quinta-feira, 29 de maio de 2014

SISTEMAS MORFOCLIMÁTICOS DE EROSÃO E SEDIMENTAÇÃO


        Zonalidade climática da Terra (imagem retirada de «climatologiageografica.org»)


O meu professor no 3ème Cycle de Sédimentologie, em Paris, nos anos de 1962-1964, André Cailleux, introdutor, entre nós, do conceito de “Sistema Morfoclimático de Erosão e Sedimentação”, abriu-me o mundo a uma visão global das paisagens físicas deste nosso Planeta Azul que a ganância de uns tantos está sistematicamente a agredir.
Eis, numa síntese, o que aprendi com ele e o que, com o passar dos anos, fui acrescentando.
No âmbito de uma zonalidade climática  grosso modo condicionada pela latitude, mas também pela interioridade e pelo relevo, a meteorização, a erosão, o transporte e a sedimentação agem, no âmbito da geodinâmica externa, como processos responsáveis pela gliptogénese (do grego glyptós, gravado), ou seja, a escultura do relevo e, ao mesmo tempo, pela sedimentogénese, iniciada pela deposição de sedimentos que, via de regra, com o passar de milhões de anos, se transformam em rochas sedimentares . Nesse sentido, existe uma dialéctica constante entre estes quatro processos e o relevo, condicionando, assim, a paisagem física. Nas diversas latitudes e sob as mais variadas condições climáticas, a erosão (precedida ou não de meteorização) desgasta as montanhas, muitas das quais, tal como as vemos, não são mais do que ruínas evocadoras das grandes cadeias orogénicas que já foram.


              Na Austrália, a conhecida Ayers Rock é oque resta de uma cadeia orogénica de há 550-530 Ma.

Por outro lado, o relevo, em estreita associação com o clima (grandemente dependente da latitude), condiciona todos os processos intervenientes na geração de sedimentos, a começar na meteorização das rochas e na formação dos solos (pedogénese ), passando pela erosão e pelo transporte, e terminando na sedimentação. Por exemplo, as acções erosiva, transportadora e deposicional dos rios só se fazem sentir nas regiões climáticas propícias à existência de águas correntes.
Por seu turno, os glaciares só funcionam em ambientes de precipitação niveal abundante e suficientemente frios e declivosos, como acontece em latitudes polares e nas montanhas acima de determinadas altitudes.


                             Glaciar na Groenlândia.

A erosão, transporte e sedimentação eólicos necessitam de vento e de terrenos despidos de vegetação, o que acontece, sobretudo, nas zonas marcadas pela aridez .
Relativamente a estes mesmos processos, uma plataforma carbonatada, como, por exemplo, as dos mares recifais, não pode deixar de ser associada à sua condição tropical, de águas mornas (30 o C, em média) e límpidas, do mesmo modo que algumas turfeiras  evocam a sua génese nos plainos, em latitudes ou em troços de altitude, temporariamente geladas.
Como síntese e resumidamente, pode dizer-se que o relevo, o clima (em especial a precipitação de chuva ou de neve e a temperatura), a natureza das rochas e a vegetação (já de si uma consequência dos outros factores apontados) interagem de modo a determinarem o tipo e a intensidade da gliptogénese e da sedimentogénese. Tal interacção permite conceber uma relação muito estreita entre eles e a paisagem física que, por seu turno, condiciona a paisagem mais ou menos humanizada que hoje se nos oferece.
Sem qualquer compromisso com as várias sistematizações propostas pelos diversos autores é, pois, possível estabelecer uma certa correspondência entre uma região com dadas características geomorfológicas e climáticas, por um lado, e os agentes e processos nela actuantes, por outro. Esta visão morfoclimática esteve subjacente ao conceito de erosão normal, definido em 1899, pelo geomorfólogo americano William Morris Davis (1850-1934), para as regiões temperadas húmidas das latitudes médias (do continente norte-americano e da Europa ocidental) apresentadas como regra, norma ou padrão, relativamente a outros tipos de erosão próprios de outros ambientes encarados como desvios a esse padrão, como são, por exemplo, o árido ou o glaciário. Em 1944, o geomorfólogo alemão Julius Büdel (1903 1983) definiu as Formkreisen ou regiões morfogenéticas, nas quais punha em destaque a já referida estreita ligação entre, por um lado, o clima, os agentes e as acções que lhe são próprios e, por outro, a configuração do relevo e demais aspectos das respectivas paisagens, nomeadamente a ocupação vegetal.
Este conceito fez escola e, a partir dele, tornou-se consensual o estabelecimento de nove tipos de regiões morfogenéticas em associação com outros tantos tipos de clima: glaciário, periglaciário, boreal, marítimo, temperado, savana, semiárido, árido e quente-húmido (selva).
Distinguem-se, neste domínio da investigação, muitos geógrafos e geomorfólogos, com destaque para os franceses Henri Baulig (1950), Pierre Birot (1950) e André Cailleux (1959), o sul-africano Lester C. King (1948) e os americanos Thomas C. Chamberlin (1910), Chester K. Wenthorth (1928), Alan N. Strahler (1960) e Robert W. Christopherson (1994). Este último introduziu nesta temática o termo geossistema a partir do conceito termodinâmico da palavra. Com base no trabalho desenvolvido, foram definidos sistemas morfoclimáticos de erosão e sedimentação, tantos quantas as regiões climáticas que se entenda individualizar. Uma tão marcada correspondência não impede porém que, dentro de um mesmo sistema, ocorram morfologias, de algum modo discordantes, relacionadas com aspectos geológicos localizados (litologia e/ou estrutura) ou com a persistência de formas herdadas, residuais de situações morfoclimáticas anteriores.



O vale glaciário (perfil transversal em U) do Zêzere, hoje situado num sistema temperado, é uma herança do último período frio (Würm) do Quaternário.

Neste ponto, o princípio das causas actuais ensina que, por comparação com o presente, os agentes e processos do passado podem ser investigados através do estudo das rochas sedimentares correlativas. Por outras palavras, em qualquer momento da história da Terra, os agentes, os processos e os mecanismos modeladores do relevo, próprios de uma dada zona climática, determinam nela um conjunto de características geomorfológicas que a distinguem de outras marcadas por outros climas. Tais acções, processos e mecanismos deixam as suas marcas nas rochas sedimentares que deles resultaram e, por isso, adjectivadas de correlativas. Assim, o estudo dessas marcas permite conhecer as respectivas características geográficas do passado, ou seja, as reconstituições paleogeográficas o que constitui um dos principais objectivos da sedimentologia.

                                          Galopim de Carvalho