Na
enciclopédia escrita no século X pelos Irmãos da Pureza pode ler-se: a erosão
destrói perpetuamente as montanhas e o escorrer das águas pluviais arrasta
rochedos, pedras e areia para o leito das torrentes e rios que, por seu turno,
ao escoarem-se, acarretam tais materiais para os pântanos, lagos e mares, onde
os acumulam sob a forma de camadas sobrepostas.
We
could read the Earth’s history in geological record of its stratified
sedimentary rocks. (James Hutton, 1726-1797)
O
“Livro dos Sedimentos”, reconstruído pelo esforço de diversas gerações de
geólogos, equivale a um extensíssimo documento histórico, ao lado do qual todos
os alentados volumes da História da Humanidade não passam de insignificantes
opúsculos. (George Gamov, 1941).
Em
geologia, o conceito de sedimento abarca
os fragmentos ou clastos de origem terrígena ou orgânica transportados por
agentes naturais e que acabam por se depositar e acumular, via de regra, sob a
forma de estratos ou camadas. Num leque dimensional que vai dos grandes blocos
de rocha (como os das moreias glaciárias) às finíssimas partículas da dimensão
das argilas, passando por seixos, areias e bioclastos (como conchas de moluscos
e seus fragmentos), estes sedimentos, passiveis de serem transportados pelas
águas pluviais, de escorrência e fluviais, por correntes marinhas, pelo gelo,
pelo vento ou por simples acção da gravidade, constituem o material que, ao
longo do tempo geológico, se transforma na chamadas rochas sedimentares .
Mas
o termo sedimento tanto designa a partícula individual sujeita à dinâmica
sedimentar, como a população de partículas envolvidas nesse processo, mesmo que
ainda em trânsito, como também o corpo sedimentar depositado e imobilizado,
isto é, o próprio depósito, no seu conjunto. Por outras palavras, sedimento
tanto é o conjunto de partículas transportado como o depósito material das
mesmas. Dado o seu carácter não coeso, um sedimento, neste outro sentido, é um
corpo geológico instável, temporário, passível de ser retomado. É, pois, um
depósito dinâmico e, nesta perspectiva, alguns autores têm-lhe dado o nome de
rocha móvel. Todavia, destituídos de coesão entre os seus constituintes, este
tipo de materiais escapa ao conceito vulgar de rocha, tal como ele é
normalmente usado (o de pedra coesa e rígida), quer na linguagem corrente, quer
na dos profissionais da construção civil que usam, habitualmente a expressão
rocha firme (o bedrock, dos ingleses),.
Fala-se,
com efeito, de sedimentos em suspensão, sedimentos remobilizados, sedimentos
transportados eolicamente, sedimentos consolidados, sedimentos litificados,
etc. O uso do termo foi proposto pelo alemão Arnold Lasaulx (1875), na sua
classificação geral das rochas, ao estabelecer a classe “sedimentos puros”, na
qual incluiu os calhaus ou seixos fluviais e de praia, as areias de rio, de
praia e de duna, e ainda, os Löss, termo vulgar germânico que adoptou para
indicar os sedimentos mais finos, isto é, os siltes e as argilas. Actualmente,
o termo refere um depósito silto-argilo-calcário, de origem eólica, não coeso,
depositado em regime periglaciário, com capacidade agrícola reconhecida. Com a
grafia internacionalizada loess, o termo radica no alemão lose, que significa
friável, não coeso.
Na
sistemática petrográfica, as rochas sedimentares abarcam não só os materiais
coesos, como calcários, conglomerados, arenitos, sílex, entre muitos outros,
como também os sedimentos recentes, via de regra incoesos ou móveis, nos termos
em que assim os referimos . O estudo comparativo destes com as rochas
sedimentares, entendidas como sedimentos antigos, constitui o pilar da
interpretação destas rochas sob os mais variados aspectos. Com efeito, partindo
do princípio que, tanto hoje como no passado, as mesmas causas produzem os
mesmos efeitos , é viável reconhecer tipos de ambientes geográficos e
geológicos, mais ou menos remotos, comparando as características das
respectivas rochas com as dos materiais actualmente em formação nos diversos
ambientes do presente que temos a possibilidade de ver “funcionar”. É, pois,
com base neste pressuposto que pudemos tomar conhecimento da existência de
glaciações no Precâmbrico e no Carbónico, de desertos no Devónico da Grã
Bretanha e da América do Norte, de florestas húmidas e quentes no Carbónico da
Europa e da América do Norte, de lagunas evaporíticas no Triásico europeu,
etc..
Os
sedimentos revelam quase sempre, de maneira mais ou menos evidente, a natureza
das rochas de onde provêm, isto é, a respectiva filiação. Para uma dada região,
podem reflectir as características do relevo e do clima existentes à altura da
sua formação, os agentes de erosão e transporte que os actuaram, bem como o
ambiente onde, finalmente, se depositaram. Podem ainda, em determinados casos,
indicar a respectiva idade. Nestes termos, é muitas vezes possível
correlacionar os sedimentos e as rochas sedimentares com a geologia, a geomorfologia e o clima seus contemporâneos e
procurar decifrar, na sucessão dos estratos ou camadas, a correspondente
sequência dos acontecimentos geológicos e, portanto, a evolução geomorfológica
correlativa.
Ao
introduzir o conceito de “formação correlativa”, Walter Penk (1888-1923),
geógrafo austríaco, filho de um outro geógrafo, Albrecht Penk (1858-1945), que
foi o pioneiro no estudo dos sedimentos como via de investigação no âmbito da
geografia física. Entendida como o conjunto dos depósitos sedimentares
resultantes da erosão de um dado relevo, a dita formação correlativa
testemunha, pelas suas características sedimentológicas, a história da evolução
desse relevo, além de que permite investigar o tipo de erosão que o afectou e o
clima sob o qual se processou essa erosão. Este conceito deu um novo rumo a
esta disciplina, que passou a associar o estudo dos sedimentos à tradicional
observação dos elementos da paisagem, que caracterizou a obra dos clássicos
geógrafos, abrindo portas à moderna geomorfologia. Foi assim que a
sedimentologia e os seus diversos procedimentos analíticos entraram nas
preocupações dos geógrafos e geólogos do século XX. O livro “Morphological
Analysis of Landforms”, da autoria deste autor, falecido prematuramente aos 35
anos de idade, foi publicado, a título póstumo, pelo seu pai, em 1924, sendo
considerado um marco na geomorfologia à escala internacional.
Entre
outros geógrafos e geólogos, o francês Pierre Birot e o português Orlando
Ribeiro encorajaram o uso desta via. O primeiro criou um laboratório de
sedimentologia no Institut de Géographie de Paris, que frequentei nos anos de
1962 a 1964, e o segundo dotou o Centro de Estudos Geográficos da Universidade
de Lisboa, de um outro, no mesmo domínio que, a seu convite, montei e no qual trabalhei de 1965 a
1981.
Galopim de
Carvalho