Zonalidade climática da Terra (imagem retirada de
«climatologiageografica.org»)
O
meu professor no 3ème Cycle de Sédimentologie, em Paris, nos anos de 1962-1964,
André Cailleux, introdutor, entre nós, do conceito de “Sistema Morfoclimático
de Erosão e Sedimentação”, abriu-me o mundo a uma visão global das paisagens
físicas deste nosso Planeta Azul que a ganância de uns tantos está
sistematicamente a agredir.
Eis,
numa síntese, o que aprendi com ele e o que, com o passar dos anos, fui acrescentando.
No
âmbito de uma zonalidade climática
grosso modo condicionada pela latitude, mas também pela interioridade e
pelo relevo, a meteorização, a erosão, o transporte e a sedimentação agem, no
âmbito da geodinâmica externa, como processos responsáveis pela gliptogénese
(do grego glyptós, gravado), ou seja, a escultura do relevo e, ao mesmo tempo,
pela sedimentogénese, iniciada pela deposição de sedimentos que, via de regra,
com o passar de milhões de anos, se transformam em rochas sedimentares . Nesse sentido,
existe uma dialéctica constante entre estes quatro processos e o relevo,
condicionando, assim, a paisagem física. Nas diversas latitudes e sob as mais
variadas condições climáticas, a erosão (precedida ou não de meteorização)
desgasta as montanhas, muitas das quais, tal como as vemos, não são mais do que
ruínas evocadoras das grandes cadeias orogénicas que já foram.
Por
outro lado, o relevo, em estreita associação com o clima (grandemente
dependente da latitude), condiciona todos os processos intervenientes na
geração de sedimentos, a começar na meteorização das rochas e na formação dos
solos (pedogénese ), passando pela erosão e pelo transporte, e terminando na
sedimentação. Por exemplo, as acções erosiva, transportadora e deposicional dos
rios só se fazem sentir nas regiões climáticas propícias à existência de águas
correntes.
Por
seu turno, os glaciares só funcionam em ambientes de precipitação niveal
abundante e suficientemente frios e declivosos, como acontece em latitudes
polares e nas montanhas acima de determinadas altitudes.
Glaciar na
Groenlândia.
A
erosão, transporte e sedimentação eólicos necessitam de vento e de terrenos
despidos de vegetação, o que acontece, sobretudo, nas zonas marcadas pela
aridez .
Relativamente
a estes mesmos processos, uma plataforma carbonatada, como, por exemplo, as dos
mares recifais, não pode deixar de ser associada à sua condição tropical, de águas mornas (30 o
C, em média) e límpidas, do mesmo modo que algumas turfeiras evocam a sua génese nos plainos, em latitudes
ou em troços de altitude, temporariamente geladas.
Como
síntese e resumidamente, pode dizer-se que o relevo, o clima (em especial a
precipitação de chuva ou de neve e a temperatura), a natureza das rochas e a
vegetação (já de si uma consequência dos outros factores apontados) interagem
de modo a determinarem o tipo e a intensidade da gliptogénese e da
sedimentogénese. Tal interacção permite conceber uma relação muito estreita
entre eles e a paisagem física que, por seu turno, condiciona a paisagem mais
ou menos humanizada que hoje se nos oferece.
Sem
qualquer compromisso com as várias sistematizações propostas pelos diversos
autores é, pois, possível estabelecer uma certa correspondência entre uma
região com dadas características geomorfológicas e climáticas, por um lado, e
os agentes e processos nela actuantes, por outro. Esta visão morfoclimática
esteve subjacente ao conceito de erosão normal, definido em 1899, pelo
geomorfólogo americano William Morris Davis (1850-1934), para as regiões
temperadas húmidas das latitudes médias (do continente norte-americano e da
Europa ocidental) apresentadas como regra, norma ou padrão, relativamente a
outros tipos de erosão próprios de outros ambientes encarados como desvios a
esse padrão, como são, por exemplo, o árido ou o glaciário. Em 1944, o
geomorfólogo alemão Julius Büdel (1903 1983) definiu as Formkreisen ou regiões
morfogenéticas, nas quais punha em destaque a já referida estreita ligação
entre, por um lado, o clima, os agentes e as acções que lhe são próprios e, por
outro, a configuração do relevo e demais aspectos das respectivas paisagens,
nomeadamente a ocupação vegetal.
Este
conceito fez escola e, a partir dele, tornou-se consensual o estabelecimento de
nove tipos de regiões morfogenéticas em associação com outros tantos tipos de
clima: glaciário, periglaciário, boreal, marítimo, temperado, savana,
semiárido, árido e quente-húmido (selva).
Distinguem-se,
neste domínio da investigação, muitos geógrafos e geomorfólogos, com destaque
para os franceses Henri Baulig (1950), Pierre Birot (1950) e André Cailleux
(1959), o sul-africano Lester C. King (1948) e os americanos Thomas C.
Chamberlin (1910), Chester K. Wenthorth (1928), Alan N. Strahler (1960) e
Robert W. Christopherson (1994). Este último introduziu nesta temática o termo
geossistema a partir do conceito termodinâmico da palavra. Com base no trabalho
desenvolvido, foram definidos sistemas morfoclimáticos de erosão e
sedimentação, tantos quantas as regiões climáticas que se entenda
individualizar. Uma tão marcada correspondência não impede porém que, dentro de
um mesmo sistema, ocorram morfologias, de algum modo discordantes, relacionadas
com aspectos geológicos localizados (litologia e/ou estrutura) ou com a
persistência de formas herdadas, residuais de situações morfoclimáticas
anteriores.
O
vale glaciário (perfil transversal em U) do Zêzere, hoje situado num sistema
temperado, é uma herança do
último período frio (Würm) do Quaternário.
Neste
ponto, o princípio das causas actuais ensina que, por comparação com o
presente, os agentes e processos do passado podem ser investigados através do
estudo das rochas sedimentares correlativas. Por outras palavras, em qualquer
momento da história da Terra, os agentes, os processos e os mecanismos
modeladores do relevo, próprios de uma dada zona climática, determinam nela um
conjunto de características geomorfológicas que a distinguem de outras marcadas
por outros climas. Tais acções, processos e mecanismos deixam as suas marcas
nas rochas sedimentares que deles resultaram e, por isso, adjectivadas de
correlativas. Assim, o estudo dessas marcas permite conhecer as respectivas
características geográficas do passado, ou seja, as reconstituições
paleogeográficas o que constitui um dos principais objectivos da
sedimentologia.
Galopim de Carvalho