sábado, 15 de fevereiro de 2014

PARA UMA HISTÓRIA DA PALEONTOLOGIA (2)



C                                                     Coccodus insignis do Cretácico superior do Líbano

          Nos primeiros séculos do cristianismo, alguns dos seus teólogos com obra escrita, como Tertuliano de Cartago (circa 160-220) e Aurélio Agostinho, (345-430), mais conhecido por Santo Agostinho, eclesiástico romano e doutor da Igreja Católica, acreditavam que os fósseis eram restos de seres da Criação, mortos e enterrados durante o Dilúvio, tal como a Bíblia o descrevia, uma convicção também divulgada por João Crisóstomo (349-407), bispo de Constantinopla. O romano Eusébio Pamphili (265-339), bispo de Cesareia (Israel), usava, como evidências do Dilúvio e com idêntico raciocínio, os fósseis de peixes do Cretácico superior encontrados no alto do Monte Líbano, a cerca de 3000 metros de altitude.




Pedreira de calcário  do Monte Líbano, uma das jazidas de peixes fósseis do Cretácico superior mais ricas do mundo.


           A ocorrência de restos de animais marinhos, longe do mar, constituía, pois, uma clara demonstração de que esse acontecimento bíblico tinha invadido as terras, chegando a cobrir certas montanhas. Paulo Orósio (circa 383-420), natural da Hispânia e discípulo de Santo Agostinho, terá dado a mesma interpretação face aos fósseis de ostras existentes em serranias afastadas do mar.
         No século X, o médico árabe Abu ibn Sinna (980-1037), mais conhecido por Avicena, na sua obra “De Congelatione et Conglutinatione Lapidum”, retoma a ideia da escola aristotélica e explica a formação dos fósseis através de uma “virtude plástica”, que seria capaz de dar às pedras formas semelhantes a animais e plantas, sem, contudo, ter capacidade para lhes dar vida. Para ele, os fósseis testemunhavam tentativas infrutíferas da natureza para criar seres vivos, limitando-se a imitar-lhes as formas.
           Na Europa do Renascimento e na sequência do pensamento de Agostinho e de João Crisóstomo, ainda dominava a crença no Dilúvio e, assim, para alguns naturalistas, os achados de fósseis marinhos em terras emersas testemunhavam esta inundação universal. Entre os defensores desta ideia destacava-se, na Alemanha, o sacerdote católico agostiniano Martin Lutero (1483-1546), professor de teologia na Universidade de Wittenberg, de grande projecção na Europa e figura central da Reforma Protestante. Para outros, ainda desconhecedores da evolução biológica, tais achados, que designavam por lapides sui generis (pedras únicas no seu género), tinham origem no seio das rochas e eram interpretados como “caprichos da natureza”, por efeito de causas que não sabiam explicar, e não como restos de animais ou plantas. Foi neste contexto que Leonardo da Vinci (1452-1519), italiano de nascimento e uma das figuras mais importantes e conhecidas deste período, retomando as ideias pitagóricas, ignorou os textos sagrados, considerando os fósseis como restos de seres vivos anteriormente depositados no fundo do mar, fundo esse posteriormente soerguido. Da Vinci defendeu o interesse dos fósseis no conhecimento da história da Terra e descreveu, em pormenor, a fossilização. Tudo isto num tempo em que se queimava quem ousasse questionar a ordem da Criação e que pretendesse ver nos fósseis vestígios de criaturas anteriores à Divina Génese.
          Décadas mais tarde, o médico e alquimista alemão Georg Bauer (1494-1555), mais conhecido por Agricola, defendia que os fósseis resultavam de seres vivos e, recuando ao pensamento aristotélico, explicava que haviam petrificado por acção do então referido “suco lapidificante”.
        Na mesma época, o francês Bernard Palissy (circa 1510-1589)E, vendo que não tinham representação no presente, concluiu que os respectivos indivíduos haviam desaparecido, inovando, assim, o conceito de extinção das espécies. Ao observar os Cornus Ammonis (cornos de Ammon), nome que então se dava às amonites, verificou que estes fósseis eram aparentados com os actuais náutilos.



                                                  Amonite

       Esta designação, vinda da Antiguidade, fora inspirada na forma dos chifres enrolados do carneiro, visto como símbolo sagrado associado ao deus Ammon-Ra

       Precursor da paleontologia, Palissy ficou, porém, mais conhecido como ceramista e artesão, por ter procurado imitar a porcelana chinesa, e pelos seus conhecimentos, avançados para a época, sobre nascentes e aquíferos e sobre hidráulica, nomeadamente, no que respeita o abastecimento de água às cidades.
       Entretanto, na Suíça, o naturalista Konrad Gesner (1516-1565) coleccionou fósseis e, na obra escrita que nos deixou, "De Rerum Fossilium”, descreveu e figurou estes achados, apesar de não se ter manifestado de forma clara acerca da sua natureza.

                                         Galopim de Carvalho