C Coccodus insignis do Cretácico
superior do Líbano
Nos primeiros séculos
do cristianismo, alguns dos seus teólogos com obra escrita, como Tertuliano de
Cartago (circa 160-220) e Aurélio Agostinho, (345-430), mais conhecido por
Santo Agostinho, eclesiástico romano e doutor da Igreja Católica, acreditavam
que os fósseis eram restos de seres da Criação, mortos e enterrados durante o
Dilúvio, tal como a Bíblia o descrevia, uma convicção também divulgada por João
Crisóstomo (349-407), bispo de Constantinopla. O romano Eusébio Pamphili
(265-339), bispo de Cesareia (Israel), usava, como evidências do Dilúvio e com
idêntico raciocínio, os fósseis de peixes do Cretácico superior encontrados no
alto do Monte Líbano, a cerca de 3000 metros de altitude.
Pedreira de
calcário do Monte Líbano, uma das
jazidas de peixes fósseis do Cretácico superior mais ricas do mundo.
A ocorrência de restos
de animais marinhos, longe do mar, constituía, pois, uma clara demonstração de
que esse acontecimento bíblico tinha invadido as terras, chegando a cobrir
certas montanhas. Paulo Orósio (circa 383-420), natural da Hispânia e discípulo
de Santo Agostinho, terá dado a mesma interpretação face aos fósseis de ostras
existentes em serranias afastadas do mar.
No século X, o médico
árabe Abu ibn Sinna (980-1037), mais conhecido por Avicena, na sua obra “De
Congelatione et Conglutinatione Lapidum”, retoma a ideia da escola aristotélica
e explica a formação dos fósseis através de uma “virtude plástica”, que seria
capaz de dar às pedras formas semelhantes a animais e plantas, sem, contudo,
ter capacidade para lhes dar vida. Para ele, os fósseis testemunhavam
tentativas infrutíferas da natureza para criar seres vivos, limitando-se a
imitar-lhes as formas.
Na Europa do
Renascimento e na sequência do pensamento de Agostinho e de João Crisóstomo,
ainda dominava a crença no Dilúvio e, assim, para alguns naturalistas, os
achados de fósseis marinhos em terras emersas testemunhavam esta inundação
universal. Entre os defensores desta ideia destacava-se, na Alemanha, o
sacerdote católico agostiniano Martin Lutero (1483-1546), professor de teologia
na Universidade de Wittenberg, de grande projecção na Europa e figura central
da Reforma Protestante. Para outros, ainda desconhecedores da evolução
biológica, tais achados, que designavam por lapides sui generis (pedras únicas
no seu género), tinham origem no seio das rochas e eram interpretados como
“caprichos da natureza”, por efeito de causas que não sabiam explicar, e não
como restos de animais ou plantas. Foi neste contexto que Leonardo da Vinci
(1452-1519), italiano de nascimento e uma das figuras mais importantes e
conhecidas deste período, retomando as ideias pitagóricas, ignorou os textos
sagrados, considerando os fósseis como restos de seres vivos anteriormente
depositados no fundo do mar, fundo esse posteriormente soerguido. Da Vinci
defendeu o interesse dos fósseis no conhecimento da história da Terra e
descreveu, em pormenor, a fossilização. Tudo isto num tempo em que se queimava
quem ousasse questionar a ordem da Criação e que pretendesse ver nos fósseis
vestígios de criaturas anteriores à Divina Génese.
Décadas mais tarde, o
médico e alquimista alemão Georg Bauer (1494-1555), mais conhecido por
Agricola, defendia que os fósseis resultavam de seres vivos e, recuando ao
pensamento aristotélico, explicava que haviam petrificado por acção do então referido
“suco lapidificante”.
Na mesma época, o
francês Bernard Palissy (circa 1510-1589)E, vendo que não tinham representação
no presente, concluiu que os respectivos indivíduos haviam desaparecido,
inovando, assim, o conceito de extinção das espécies. Ao observar os Cornus
Ammonis (cornos de Ammon), nome que então se dava às amonites, verificou que
estes fósseis eram aparentados com os actuais náutilos.
Amonite
Esta designação, vinda
da Antiguidade, fora inspirada na forma dos chifres enrolados do carneiro,
visto como símbolo sagrado associado ao deus Ammon-Ra
Precursor da
paleontologia, Palissy ficou, porém, mais conhecido como ceramista e artesão,
por ter procurado imitar a porcelana chinesa, e pelos seus conhecimentos,
avançados para a época, sobre nascentes e aquíferos e sobre hidráulica,
nomeadamente, no que respeita o abastecimento de água às cidades.
Entretanto, na Suíça,
o naturalista Konrad Gesner (1516-1565) coleccionou fósseis e, na obra escrita
que nos deixou, "De Rerum Fossilium”, descreveu e figurou estes achados,
apesar de não se ter manifestado de forma clara acerca da sua natureza.
Galopim de Carvalho