Bio-rexistasia
Numa concepção do solo
como um fenómeno geológico, introduzida pelo geólogo americano Cutis Fletcher
Marbut (1863-1935), o geógrafo francês Henri Herhart (1898-1982) publicou, em
1956, uma interessante e original teoria “La genèse des sols en tant que phénomène
géologique: Esquisse d'une théorie géologique et géochimique, biostasie et
rhexistasie”, com uma segunda edição na Masson, Paris, em 1967.
Segundo o autor
francês, certas regiões do globo estiveram ou estão numa situação que referiu
por biostasia, (do grego bios, vida, e státis, estabilidade) isto é, uma
situação de equilíbrio biomorfológico, expresso principalmente por uma muito
vasta e densa cobertura vegetal, de longa duração e estável. Tal acontece
porque, durante períodos muito longos, não se verificaram variações sensíveis
das condições ambientais sob as quais essa cobertura se desenvolveu, situação
exemplificada pela actual floresta quente-húmida amazónica. O equilíbrio
biológico próprio deste tipo de cobertura vegetal protege o solo da erosão mecânica,
mas é favorável à alteração química em profundidade e subsequente evacuação dos
materiais solubilizáveis. O período biostásico é sempre um intervalo de tempo
longo, à escala geológica, e de pedogénese intensa. Por seu lado, rexistasia
(do grego rhexis, rotura, e státis, estabilidade) refere, ao contrário, um
tempo muito mais curto, caracterizado pela rotura daquele equilíbrio e
consequente destruição da cobertura vegetal, com exposição do solo à erosão
mecânica. As causas desta interrupção são geralmente devidas a mudanças
climáticas, mais ou menos acentuadas e bruscas, quer no sentido do
arrefecimento, quer no da elevação da temperatura, acompanhada de secura,
conduzindo à desertificação.
Durante os longos
períodos biostásicos, a manutenção de condições de humidade e de temperatura
relativamente elevadas e estáveis, associadas à exuberância da cobertura
vegetal dela dependente, conduzem a intensa alteração das rochas e a profunda
evolução dos solos, proporcionando, contudo, acentuada protecção destes
materiais, face aos agentes de erosão mecânica. Praticamente, só os produtos
solúveis resultantes da decomposição são mobilizados e arrastados pelas águas
de infiltração, no trabalho de lavagem que exercem ao atravessá-las antes de
atingirem os cursos de água. Neste contexto, poderá falar-se de erosão química.
Com efeito, ricos de
substâncias químicas em solução (iões como Ca2+, Mg2+, K+, Na+, CO3H-, CO2-,
PO4H2-, SO42-, etc., e moléculas como SiO2) os rios promovem o seu transporte
até aos locais de sedimentação, onde esta se processa por mera precipitação
química destas substâncias ou através da acção de seres vivos que, previamente,
as incorporam na construção dos seus esqueletos, isto é, por via
bioquimiogénica. Em síntese e por outras palavras, diremos que, no que se
refere à sedimentogénese em períodos de biostasia, a sedimentação terrígena é
reduzida, ao contrário da sedimentação química e/ou bioquímica. O material
terrígeno resultante da alteração neste tipo de ambiente e que tinge a água dos
rios é, predominantemente argiloso, impregnado de óxidos de ferro.
Nos períodos de
desnudação da cobertura vegetal, resultante das crises rexistásicas, a floresta
deixa de proteger a superfície do solo que, em consequência do período
anterior, está profundamente alterado e, portanto, facilmente atacável pela
erosão. Os materiais postos em jogo no transporte e sedimentação subsequentes
são essencialmente detríticos e reflectem, na parte inferior das séries
sedimentares que alimentam, os produtos da capa de alteração (a primeira a ser
erodida) e, na parte superior, os materiais não alterados do substrato
desnudado, sujeito, sobretudo, a desagregação e erosão mecânicas. O período
rexistásico é um período de morfogénese intensa, não necessariamente longo, e a
ele se associam escassez de sedimentação química e/ou bioquímica, em contraste
com a grande importância de sedimentação detrítica, muitas vezes de carácter
torrencial bem marcado e sempre revelador de maior ou menor imaturidade.
A dialéctica biostasia versus
rexistasia, tal como a concebeu Ehrart, reforçou a dimensão geológica dos
solos, na medida em que estes são também testemunhos das paisagens continentais
suas contemporâneas, quer nos aspectos físicos (relevo, clima) quer biológicos,
em particular, a vegetação. Os constituintes minerais do solo (areia, argila)
ficam, muitas vezes, com marcas características dos ambientes a que estão
submetidos. O mesmo acontece com os solos do passado, e as marcas que levaram
consigo, na sequência da erosão, acabaram por transitar para as rochas
sedimentares detríticas, hoje patentes em sequências estratigráficas nas quais,
como nas páginas de um livro, as procuramos ler e interpretar.
Galopim de Carvalho