Não sou do Benfica nem
de nenhum outro clube de futebol. Pertenço àquela classe de cidadãos que acha
que há futebol a mais na nossa comunicação social. Mas Portugal é o que é e o
“rei” deu grandes momentos de felicidade a milhões de portugueses. E estou-lhe
grato por isso. Sempre tive grande simpatia pelo Eusébio, assim como tive pelo
grande e malogrado Joaquim Agostinho, dois homens caracterizados por aquela
humildade sadia que só os grandes sabem ter.
No dia do seu
passamento, ocorre-me recordar um episódio que testemunha o quanto ele foi
importante à escala mundial.
Numa das últimas vezes
em que participei na grande Feira Internacional de Minerais e Gemas de Tucson;
não quis deixar de fazer a quase religiosa peregrinação ao monumental Grand
Canyon do Colorado, que tem ali, no Arizona, a sua mais grandiosa expressão e
onde, pela primeira vez, me deparei, no concreto, com a enormidade do tempo
geológico. Estão ali à vista, nos mil e seiscentos metros de profundidade deste vale, cerca de dois mil
milhões de anos, pouco menos de metade da história do nosso Planeta.
Nessa deslocação pelos
espaços subdesérticos do Far West americano, percorremos as planuras eriçadas
de picos rochosos do Monument Valley, emblemática paisagem que John Ford
divulgou por esse mundo através dos seus inesquecíveis westerns, e emocionei-me
no bordo da Meteor Crater, um buracão com mais de um quilómetro de diâmetro e
quase 200 metros de profundidade, aberto há cerca de 50 000 anos, num planalto
desértico, pela queda de um gigantesco meteorito.
Monument Valley
Meteor Crater
Visitámos, ainda, em
pleno deserto, uma pequena jazida com pegadas de dinossáurios, vistosamente
anunciada à beira da estrada. Chegados ao local, marcado por uma espécie de
barraca de madeira, com artesanato à venda, de onde sobressaía a bijouterie, à
base de turquesa, surgiu-nos um navajo, com uma vassoura de cabo comprido nas
mãos, e um crachá que o identificava como guia.
.A vassoura era para
ir varrendo a areia que o vento ia transportando para dentro daquelas
depressões tridáctilas deixadas pelos carnívoros que por ali andaram há mais de
200 milhões de anos. À medida que varria, o índio ia-nos dando, no seu inglês,
aquelas explicações que dava a toda a gente na sua condição de guia. No fim da
visita, este homem, que só não era um dos perseguidos pelos cow boys de John
Ford, porque usava chapéu como o dos “camones”, calçava botas de tacão alto,
blue jeans e camisa country, virando-se para nós, surpreendeu-nos ao dizer «are
you portugueese?!». Face à surpresa que todos manifestámos, começou por dizer
que, em criança, tinha frequentado a escola numa missão católica espanhola, e
aprendera aí a falar o castelhano. Explicou, depois, que percebia perfeitamente
a nossa conversa e que, por isso, devíamos estar a falar português. Sabia que
Portugal ficava ao lado da Espanha, que a capital era Lisboa, banhada pelo rio
Tejo. Este descendente, em linha directa, dos asiáticos que há milhares de anos
atravessaram o estreito de Bering, coberto pela calote polar gelada, relegado
nos confins da reserva que os colonizadores europeus lhe deixaram, no seu
próprio torrão natal, sabia mais do que se passava fora do ermo onde vivia do
que a média dos “caras pálidas”, seus concidadãos ditos civilizados. Sabia que
o nosso presidente se chamava Mário Soares e, entusiasmado pela nossa
admiração, falou-nos da Amália Rodrigues e do fado, que gostava de ouvir, e do
Eusébio, que achava o maior jogador do mundo.
Galopim de Carvalho