Uma pequena troca de
opiniões que teve lugar há dias, no
Facebook, envolvendo programas escolares, exames e professores, levou-me, uma
vez mais, a partilhar com todos os amigos o que penso sobre este complexo e
delicado assunto.
Referindo-me
unicamente à área do conhecimento na qual me movimentei, ao longo de décadas
como professor, estou em crer que todos os males de que enferma o nosso ensino
básico e secundário na disciplina de Geologia começam nos programas oficiais,
da responsabilidade do Ministério da tutela e das equipas que, oficialmente, os
elaboram. Continuam na formulação dos questionários propostos nos pontos de
exame, ao que parece, especialmente concebidos para conduzirem a respostas
curtas de fácil e rápida correcção. Igualmente da responsabilidade deste
Ministério e das equipas indigitadas para o efeito, estes questionários estão,
assim, muito longe de permitirem a avaliação dos examinandos em termos da sua
maturidade e capacidade expositiva, bem como da sua real preparação no que
respeita as matérias do respectivo programa. Um tal condicionalismo leva os
autores dos livros escolares e as editoras a produzirem manuais onde os
conceitos, tantas vezes estereotipados, acríticos e, uma vez por outra,
imprecisos, se sucedem.
Seguidores quase à letra
de uma pedagogia segundo a qual, mais do ensinar através da exposição
discursiva, o professor deve estimular os alunos a descobrirem o conhecimento,
estes manuais copiam-se e recopiam-se a partir de outros que enfermam da mesma
filosofia. Pouco ou nada munidos da componente cultural essencial a quem tem
por missão ensinar, alguns destes autores revelam-se, ainda, deficientemente
habilitados na componente científica das matérias versadas.
A principal missão do
professor, a mais nobre e para a qual foi (ou deveria ter sido) preparado, é
facultar aos seus alunos não só o conhecimento, mas os meios e os caminhos que
lhes permitam atingi-lo, pois só esse conhecimento convenientemente assimilado
o valorizará como profissional e como cidadão. Porém, as amarras do programa
oficial, o obediente e acrítico manual escolar e o espectro do exame final
contrariam qualquer acção dos bons professores, no que toca o ensino vivo da
disciplina. Não custa a admitir que entre as preocupações do professor, tem
particular relevo a de habilitar os seus alunos para a avaliação a que,
necessariamente, têm de ser submetidos no final do ano lectivo. E, aí, os
manuais de ensino, com perguntas e respostas estereotipadas, acabam por se
sobrepor ao adequado e necessário tratamento das matérias. Convenientemente
adquirido e interiorizado, o conhecimento destas matérias confere dimensão
cultural à geologia, forma cidadãos mais conscientes da sua posição na
sociedade e defensores activos do ambiente e do nosso património natural.
Conduzir os alunos tendo por objectivo principal, muitas vezes o único,
prepará-los para transporem a barreira chamada exame, leva-os a ver nas
respectivas matérias algo de desinteressante e enfadonho, a cumprir para
efeitos de avaliação escolar e, de seguida, lançá-las no caixote do
esquecimento. De imensa e inesgotável que parecia, ao tempo de Colombo, Gama e
Cabral, a Terra tornou-se pequena e frágil aos nossos olhos. Constante e
progressivamente agredida pelo imenso, anónimo, insaciável e incontrolado mundo
dos cifrões, este nosso condomínio está a dar sinais preocupantes de
esgotamento de recursos e de degradação ambiental. Há, pois, que defendê-lo e,
para tal, é imperioso conhecê-lo, cabendo à escola e aos professores um papel
fundamental.
Muitos dos professores
incumbidos de ensinar Geologia nas nossas escolas são licenciados em Biologia,
sem qualquer preparação académica na área das ciências da Terra. Devo, no
entanto, salientar que nas muitas escolas que visitei e continuo a visitar por
todo o país, como convidado, fazendo palestras para professores e/ou alunos,
participando em debates ou em outras actividades, conheci licenciados em
Biologia que, mercê de intenso estudo autodidático, se revelaram tanto ou mais
interessados e competentes no ensino da Geologia, do que muitos dos seus pares
licenciados nesta disciplina.
Já o disse e volto a
dizer que é preciso elevar a cultura geológica dos portugueses e isso começa na
escola. De há muito que venho alertando, em textos escritos e em conversas
públicas, para a pouca importância dada ao ensino desta disciplina nas nossas escolas
dos ensinos básico e secundário. Quem, a nível político, decide sobre o maior
ou menor interesse das matérias curriculares referentes a esta disciplina,
desconhece a real importância deste domínio do conhecimento como motor de
desenvolvimento e bem-estar, mas também como componente da formação integral do
cidadão.
Salvo uma ou outra
excepção, a falta de cultura geológica dos portugueses é uma realidade
transversal, das elites intelectuais sobejamente eruditas ao mais iletrado dos
cidadãos. Os nossos concidadãos sabem dizer granito, basalto, mármore,
calcário, xisto, barro, petróleo, gás natural, quartzo, feldspato e mica, mina,
vulcão, montanha, planície, mas ignoram a origem, a natureza e o significado
destas entidades como documentos da longa história que nos antecedeu nesta
“bola colorida”. O conjunto de conhecimentos inerentes a esta história tem
todas as condições para despertar a curiosidade dos alunos, abrindo-lhes as
portas aos múltiplos domínios de um programa convenientemente elaborado por quem
tenha competência científica e cultural para o fazer.
A Geologia, insisto em
repetir, não pode deixar de ter uma dimensão cultural ao dispor do cidadão
comum. Os professores devem ter consciência desta realidade quando se dirigem
aos seus alunos, uma vez que não estão só a fornecer bases para eventuais
candidatos às licenciaturas na área da Geologia (sempre raros ou inexistentes
numa qualquer turma escolar), estão, sobretudo e na maioria dos casos, a formar
cidadãos para quem essas bases são fundamentais em termos de preparação global.
E porque não ligar
estes conhecimentos às nossas origens, onde e em especial o sílex e o barro
foram alvo de procura e utilização, e à sucessiva ocupação do território por
outros povos e civilizações (fenícios, gregos, cartagineses, romanos e árabes),
em busca do ouro, do cobre e do estanho? E porque não associar a nossa História
à realidade física (leia-se geológica, geomorfológica, mineira, sismológica) do
país?
Quarenta anos de
ensino teórico e/ou prático de diversas disciplinas (da Mineralogia e
Cristalografia à Geologia, passando pela Paleontologia e pela Geomorfologia) na
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, dos quais, dezasseis também na
Faculdade de Letras (em Geografia) e, ainda centenas de aulas ou lições nas
escolas (dos jardins de infância às secundárias) de norte a sul do território
continental, das Ilhas e de Macau, mostraram-me, à saciedade, que aprender a
gostar de saber, qualquer que seja o nível no sistema educacional, é uma das
chaves que abre o caminho ao sucesso escolar. O professor tem de ter saber (por
vocação própria ou porque para tal foi preparado) levar os educandos a gostarem
das matérias que têm, por dever, transmitir-lhes. Tem de os incentivar a terem
prazer no convívio com ele e, assim, sentirem a escola como algo importante nas
suas vidas. A experiência também me ensinou que, em especial, face aos alunos
mais crescidos, há outras ferramentas ao alcance do professor para os conduzir
no referido sucesso. Uma, é conseguir inculcar neles a consciência do dever
cívico de estudar, levando-os a tomarem consciência do privilégio que têm de
usufruir da condição de estudante numa sociedade onde milhares de jovens
permanecem privados dela. A outra chave não menos importante é estimular-lhes a
autoestima. Por outras palavras, o professor tem de ter artes para fazer dos
seus alunos jovens que têm gosto em aprender, que frequentam a escola com
prazer, que encaram o estudo como um dever de cidadania e têm brio na sua
condição de estudantes. Para tal, tem de conseguir estabelecer com eles uma
aproximação de confiança e afectividade mútuas que lhe permita actuar, com
êxito, nestas vertentes. Foi assim, durante quarenta anos, a minha relação com
os muitos milhares de alunos com quem troquei saberes e afectos.
Essa tripla condição,
que está ausente num número infelizmente muito grande dos rapazes e raparigas
das nossas escolas, podemos imaginá-la, por exemplo, nos alunos ucranianos que,
na viragem do século, aqui chegaram com os pais, aquando das primeiras vagas de
imigrantes vindos de um país de Leste, onde esses valores, devo concluir, são
uma realidade.
”O poder do feiticeiro
reside na ignorância dos seus irmãos tribais”. Trata-se aqui de um dito que, na
nossa sociedade e no nosso tempo, nos adverte para o facto de que só o
conhecimento nos defende dos opressores.
É esta realidade que
os professores devem fazer sentir aos seus alunos, em especial aos mais
desprotegidos e atingidos pela exclusão social que grassa em tantas escolas
marcadas pela suburbanidade crescente que caracteriza as sociedades
desenvolvimentistas. O Sistema promove e alarga o fosso entre os que estudam, e
assim aspiram e conquistam o direito à cidadania, e os outros. E nestes outros
estão os do trabalho precário e a grande maioria dos que caem na marginalidade.
É uma obrigação do
professor transmitir esta mensagem aos seus alunos, na batalha contra o
insucesso escolar. Cegos e alienados por “valores” vazios, sabiamente
alimentados pelo mesmo Sistema, muitos dos alunos das nossas escolas básicas
não se apercebem que estão a consentir serem vítimas de uma segregação a prazo,
sendo necessário que alguém lhes abra os olhos. E esse alguém, à falta da acção
dos pais, tem de ser o professor. Para tal, repito, há que saber ganhar a
confiança dos alunos e, também, o seu afecto. Feliz do estudante que gosta da
convivência com o seu professor e duplamente feliz se esse professor estiver à
altura do seu papel que, para além de educacional, é, também e sobretudo,
social.
Galopim de Carvalho