Quando iniciei a minha caminhada nos
trilhos da Geologia, ainda na situação de estudante na Licenciatura, trazia
como bagagem os conhecimentos bem organizados e bem explanados nos livros do
professor João Carrington da Costa, da Universidade do Porto. Sem o espalhafato
colorido e o estereotipado de conceitos, reduzidos a meras e rígidas definições
de alguns dos livros actuais, o estilo literário, discursivo, dos textos deste
que foi mestre de dois grandes nomes da geologia portuguesa – Carlos Teixeira,
na Universidade de Lisboa, e Cotelo Neiva, na de Coimbra – ainda hoje convida à
leitura, não obstante a natural desactualização de mais de seis décadas de
espectaculares avanços.
Melhor do que amestrar o aluno a
responder, tantas vezes acriticamente, aos testes e exames, a prosa cuidada do
professor Carrington despertava-lhe a curiosidade pelos problemas abordados e
encaminhava-o a reflectir sobre eles. Tal era a sua capacidade de sintetizar,
com inteligência, rigor e elegância escrita, longos trabalhos de outros autores
que, dizia o professor Orlando Ribeiro, «se tivesse disponibilidade financeira,
tê-lo-ia contratado para lhe fazer recensões inteligentes de teses de
doutoramento e de outros calhamaços».
A vivência que experimentei, como
cidadão e como docente, sempre me confrontou com uma sociedade pouco
interessada no conhecimento científico, em geral, e ainda menos no respeitante
às ciências da Terra. Este panorama tocou-me bem de perto quando, terminado o
liceu, em 1950, mostrei vontade de cursar Geologia e o meu pai me desviou desse
propósito, argumentando que esse era um caminho sem futuro e que, aliás, em sua
opinião, ninguém sabia o que era e para que servia esse curso. Biologia, sim,
era um curso que, no dizer dele, tinha sempre colocação garantida como
professor de liceu. O desconhecimento e o consequente pouco interesse, entre
nós, pelas disciplinas da área da Geologia é um facto que pude constatar mesmo
entre a generalidade dos meus concidadãos mais letrados, quadros superiores e
outros. Quantos são, pergunte-se, os nossos juristas, economistas, gestores de
empresas, autarcas e homens e mulheres saídos aos milhares das nossas escolas
superiores de artes e letras, capazes de responder às mais elementares questões
que os geólogos trouxeram e continuam a trazer à luz do conhecimento? Quantos
são, por exemplo, os portugueses capazes de explicar o baixíssimo custo dos
hoje vulgaríssimos relógios de quartzo? Ou porque é que o alumínio, que foi
coisa rara e cara no tempo dos avós, invadiu os trens de cozinha e é hoje um
dos metais mais usados na construção civil (em caixilharia)? Ou, ainda, porque
é que há sal-gema em Loulé, antracite (carvão de pedra) nos arredores do Porto,
ardósias em Valongo, mármores em Estremoz e minério de cobre no Baixo Alentejo?
etc., etc..
Todos conhecemos que o saber
científico e, em particular, o do domínio da Geologia, não faz parte das
preocupações da grande maioria dos nossos agentes de cultura, quase sempre
vindos de todas as áreas, menos das científicas e tecnológicas. O nosso sistema
de ensino sempre subalternizou as geociências. Neste contexto, a maioria dos
portugueses viu e ainda vê no estudo dos minerais, das rochas e dos fósseis
algo de desinteressante e enfadonho, a cumprir para efeitos de avaliação
escolar e, de seguida, lançar no caixote do esquecimento.
Uma tal realidade, vinda de muito
longe e que, só mais recentemente, mostra alguma tendência a inverter-se, não
tem conduzido ao despertar de vocações em número suficiente, nem tem criado
condições que fizessem sentir a necessidade de criação de aberturas
profissionais e correspondentes postos de trabalho. Em consequência, o número
de geólogos portugueses é francamente baixo face à importância da sua
especialização profissional numa sociedade em franca transformação, carente de
desenvolvimento, necessariamente sustentado, compatível com os valores da
natureza, onde a prospecção, estudo, exploração e gestão dos recursos
geológicos (águas subterrâneas, combustíveis fósseis e nucleares, minérios e
rochas ornamentais e industriais), a implantação de grandes obras de engenharia
(barragens, pontes, portos), a prevenção de catástrofes naturais, (sismos,
erupções vulcânicas, cheias, deslizamentos de terras), a defesa do ambiente, o
ordenamento do território, etc., assumem cada vez maior relevo.
Contam-se pelos dedos de uma mão as
Câmaras Municipais que incluem um geólogo nos seus quadros. Juristas,
economistas, arquitectos paisagistas têm que lhes chegue, mas geólogos,
praticamente, nenhuns. Algumas dão emprego a arqueólogos, e bem hajam por isso,
mas paleontólogos, zero.
O leitor que, eventualmente, tenha
acedido à prosa que fui publicando ao longo da última vintena de aos, notará
alguma repetição no tocar insistente desta mesma tecla, a da relativamente
pouca atenção dada às ciências geológicas nas nossas escolas, em contraste com
a importância deste domínio científico e tecnológico na sociedade. Esta minha
insistência faz parte de uma estratégia assumida como atitude cívica radicada
numa convicção bem fundamentada e muito arreigada. Ela não é mais do que a
continuação do caminho iniciado por outros, com destaque para o Prof. Carlos
Teixeira, em prol da Geologia e da dignificação da profissão de geólogo. Há
quase meio século, na oração de sapiência proferida na sessão solene de abertura
do ano lectivo 1967-1968, na Universidade de Lisboa, dizia este meu professor:
“O estado de avanço de um País pode medir-se pela qualidade e extensão da
cartografia geológica de que dispõe. O mesmo se pode afirmar quanto ao número
de geólogos que possui, em relação à superfície ou a população”. Mais adiante,
discorrendo sobre a situação da Geologia em Portugal, afirmava que o “o nosso
País não figura entre aqueles em que os estudos geológicos estão mais
avançados” e continuava dizendo que “não está ainda difundido no País o
conhecimento da função do geólogo” e que “muitos dos responsáveis pela
orientação técnica de trabalhos públicos e particulares estão desactualizados e
não possuem a noção exacta dos serviços prestados pela Geologia”. Infelizmente,
pouco ou nada mudou, no que concerne esta afirmação.
Ao referir-se aos
livros de ensino neste domínio do saber, o Prof. Carlos Teixeira denunciava que
“são, em geral, deficientes, desactualizados, mal apresentados”, atribuindo
essa responsabilidade não só aos autores mas, também, em grande parte, às
comissões que os aprovavam, parcialmente desconhecedoras das matérias. A
experiência do livro único era, em sua opinião, “longa e claramente
demonstrativa da ineficiência do sistema, que submete o aluno e o professor à
imposição nefasta do compêndio, às vezes pejado de erros”.
Como se vê avançou-se muito pouco,
entre nós, nesta luta por um “lugar ao sol” de uma ciência que, nos países
verdadeiramente avançados, é parte desse mesmo sol.
No fim de uma longa carreira no
âmbito da docência, da investigação científica e da divulgação, com experiência
como geólogo de campo na cartografia, na prospecção e no estudo de jazidas
minerais de interesse económico, sinto-me motivado para reflectir em torno da
cultura geológica dos portugueses.
Fala-se hoje muito de dinossáurios e
já se vai sabendo o que são os fósseis, mas isso é, sobretudo, uma feliz
consequência da mediatização que dos grandes bichos se tem feito, pois o tema
vende-se bem e a comunicação social tira disso o melhor proveito, o que é bom
para todos. Nos restantes domínios das Ciências da Terra e com as excepções que
é justo acautelar, a cultura geral dos portugueses, praticamente, não existe,
mesmo entre a maioria dos nossos cidadãos mais letrados, incluindo alguns
jornalistas que insistem em tratar-nos por arqueólogos.
Neste domínio do conhecimento não se
erra ao dizer que, em Portugal, o cidadão médio, ou não teve qualquer
aprendizagem nesta área do saber, ou esqueceu o muito pouco que aprendeu, num
desinteressante e tantas vezes ineficaz ensino destas matérias, como tem sido,
nas últimas décadas, infelizmente, característica notada do nosso sistema
escolar. Esta realidade, repito, está na base de uma manifesta inexistência de
cultura geológica nacional, a começar pela maioria dos responsáveis políticos e
da administração a todos os níveis. Uma tal carência está, por exemplo, patente
na pobreza de terminologia geológica usada nos escassos diplomas legais onde, a
custo, se pode encaixar a protecção do património geológico.
A recente mudança do nome do
Instituto de Conservação da Natureza (ICN) para Instituto de Conservação da
Natureza e da Biodiversidade (ICNB) e depois ainda para Instituto d Conservação
da Natureza e das Florestas (ICNF) foram decisões infelizes dos responsáveis e
das respectivas tutelas que, talvez distraídas, a consentiram. Foi, ainda, uma
decisão teimosa, desnecessária, redundante e ridícula, que denuncia a pouca
atenção que estes senhores dedicam à geodiversidade, sem a qual (talvez eles andem
esquecidos) não há biodiversidade. Nem esta que nos acompanha à superfície do
planeta, nem a que só nos chega através das imagens colhidas nos campos
hidrotermais das profundidades oceânicas.
Através da Geologia poderemos
explanar, de forma abrangente, ideias e interrogações que a todos interessam
como, por exemplo, a origem, a constituição e a evolução do Sistema Solar, da
Terra e da própria Vida. A estas questões universais, de pendor mais
filosófico, juntam-se muitas mais, do domínio prático. Porque é que o Algarve é
uma terra de lama vermelha no Inverno e de pó igualmente vermelho no verão,
duas particularidades que marcam negativamente esta região tão assediada pelo
turismo? Porque é que temos aqui, nesta ponta da Europa, a serra de Sintra, esta
“pérola de petrografia mundial”? Porque é o norte do país mais montanhoso do
que o sul? A que se deve a vasta lezíria do Tejo? Ou, ainda, porque emerge a
vila de Ourique, altaneira, da extrema planura do Baixo Alentejo? São outras
das muitas perguntas para as quais a geologia tem respostas, e que bom seria
que um número cada vez maior de portugueses as fosse conhecendo.
As Ciências da Terra não podem,
pois, deixar de ter uma dimensão cultural ao dispor de toda a gente. Os
professores devem ter consciência desta realidade quando se dirigem aos alunos.
Não estão só a fornecer bases para eventuais licenciados em Geologia (sempre
raros ou inexistentes numa qualquer turma escolar), estão, sobretudo e na
maioria dos casos, a formar cidadãos para quem essas bases são fundamentais em
termos de preparação global. Assim, o ensino do malfadado programa oficial
deverá ser tornado atraente com elementos culturais ligados ao quotidiano dos
alunos. As amarras do programa oficial e o obediente e acrítico manual escolar
contrariam qualquer acção dos bons professores, no que toca o ensino vivo da
disciplina. Porque não um programa mais flexível? Um programa que deixe, por
exemplo, às escolas dos Açores ensinar vulcanismo a sério (qualquer das ilhas é
um laboratório rico de extrema utilidade pedagógica, completamente
desaproveitado) e permita aos do continente fomentar o gosto por este tipo de
saber, iniciando os alunos na geologia da sua própria região: os granitos e os
xistos no norte do país, as pirites e as sequências de rochas vulcânicas e
sedimentares (Faixa Piritosa) no Baixo Alentejo, etc.. E porque não ligar estes
conhecimentos às nossas origens como território e à sucessiva ocupação deste
por outros povos e civilizações, em busca do ouro, do cobre, do estanho?
Se há domínios onde a
regionalização faz sentido, o conhecimento geológico é certamente um deles. E,
do mesmo modo que confiamos a nossa saúde ao médico, deveríamos dar ao
professor alguma liberdade e tempo curricular para, em cada local e em cada
oportunidade, escolher a melhor via formativa, o que não exclui a
obrigatoriedade de cumprir um programa mínimo, criteriosamente escolhido, por
quem tenha competência, não só pedagógica mas também científica, para o fazer.
É urgente ultrapassar esta situação.
E, enquanto o sistema educativo não fornecer aos nossos jovens a cultura
geológica necessária e suficiente, é preciso que apareça mais gente a falar
para fora das academias, para os professores e estudantes e para o cidadão
comum que é, afinal, quem paga a investigação científica que andamos a fazer e
a quem é devida justa retribuição.
Galopim de Carvalho