segunda-feira, 17 de novembro de 2014

AROMAS E SABORES DO ALENTEJO -2





Do inverno da minha infância e primeira adolescência guardo o cheiro da lareira, quer o do grande lenho de azinho que ardia lenta e a fumegar, ao centro da chaminé, arrumado à “boneca”, quer do que vinha agarrado às farinheiras, linguiças e chouriços retirados das varas do fumeiro. Recordo o cheiro do café de mistura a exalar na cafeteira de barro e do som do chiar da brasinha que se metia lá dentro para fazer assentar a borra ou o “pé”, como dizia a minha avó. Recordo o cheiro da “matula”, um trapinho, dos que ficavam da costura, embebido nos restos do azeite de fritar e que se punha, logo pela manhã, a arder no meio dos carvões na fornalha a fim de acender o lume. Era o mesmo cheiro da lamparina de azeite que a minha avó e a minha mãe acendiam às santas das suas devoções sobre as cómodas nos quartos de dormir.
Coincidentes no essencial, as muitas referências à cozinha alentejana convergem num elogio a uma comunidade muito particular, bem caracterizada, não só pelo valor cultural da sua gastronomia, como pela sua ligação à terra no trabalho e no lazer, com grande destaque para o seu cante, pérola única na museografia portuguesa.
O pão e o azeite, o porco e o borrego, as ervas e os cheiros, são as marcas mais significativas da gastronomia desta que é a maior região natural do país, a que Estrabão, o grande geógrafo grego dos finais do século I antes de Cristo, reconheceu como o paraíso das ervas frescas.

No Prefácio de “O Comer dos Ganhões. Memórias de Outros Tempos”, de Falcato Alves, editado por Campo das Letras, Porto, em 1994, Hélder Pacheco é mais um a denunciar a condição de gente explorada dos camponeses do Alentejo, ao escrever que enganam a «magreza do caldo com ouropéis mágicos de ervas, cheiros e misturas que dão sabores disfarceiros das pobrezas» e a lembrar os «comeres frugais feitos de coisas simples do dia-a-dia e do que as pessoas tinham à mão». E porque ervas e cheiros foram bens que a natureza nunca lhe negou, o alentejano aprendeu a usar produtos simples e pobres na feitura de confecções aceites como uma manifestação cultural cada vez mais divulgada e reconhecida. Como dizia o professor Orlando Ribeiro, para os alentejanos, «comer foi, acima de tudo, encher a barriga e iludir a sensação de fome» e a fome, como todos sabemos, aguça o engenho. Sem qualquer conduto a “açorda de mão no bolso”, como lhe chamei, só precisava da mão que levava a colher à boca, matava a fome e alegrava a casa com os saborosos aromas do alho e dos poejos.
Mercê de uma atitude cultural mais esclarecida e alargada, no decurso das últimas décadas, e como resultado de apoios e encorajamentos vários, a cozinha alentejana de hoje está, felizmente, a retomar a sua condição de cozinha rica na variedade dos produtos naturais utilizados e nas maneiras de os confeccionar.
Imagem de uma terra de grandes planuras e lonjuras, queimadas pelo sol de Verão e pelas geadas de Inverno, e de aldeias e montes brilhantes na luz da cal, a gastronomia alentejana tem sido uma nota particularmente resistente ao tempo e às influências que constantemente lhe chegam do exterior, representando um património etnográfico de grande valia. Com efeito, as confecções culinárias alentejanas, algumas com mais de mil anos, na sua singularidade e intemporalidade, sobreviveram e afirmam-se no presente, sem perda de identidade, sendo hoje um importante recurso em termos de oferta turística.
É esta mesma cozinha que está a ser servida pelos restaurantes não só do Alentejo como por alguns fora dele, em resposta a uma clientela conhecedora, em crescimento, a testemunhar o sucesso reconhecido deste renascer a que felizmente se assiste. Em contraste com este esplendor da cozinha que criaram, muitos alentejanos, nos campos e nas cidades, começam, de novo, a pôr menos azeite nas açordas e menos febras nas migas, substituindo-as por toucinho e farinheira, mas o essencial dos aromas e dos sabores continuarão a ser os mesmos.
Num tempo social preocupante que estamos a viver, agravado por carências e necessidades amplamente apontadas, a cozinha alentejana, experiente de um passado de dificuldades, vai continuar a tirar proveito dos produtos alimentares ao seu alcance, onde, para além dos que se podem produzir, há todos os que a terra nos oferece e, entre eles estão as beldroegas, as acelgas e as labaças, os cardos, os espargos, as cilarcas e uma variedade de cheiros, com destaque para os dois muito nossos, o poejo e a hortelã da ribeira, tantas vezes usados no propósito de compensar a falta de condutos.


                                               Galopim de Carvalho