Do inverno da minha
infância e primeira adolescência guardo o cheiro da lareira, quer o do grande
lenho de azinho que ardia lenta e a fumegar, ao centro da chaminé, arrumado à
“boneca”, quer do que vinha agarrado às farinheiras, linguiças e chouriços
retirados das varas do fumeiro. Recordo o cheiro do café de mistura a exalar na
cafeteira de barro e do som do chiar da brasinha que se metia lá dentro para
fazer assentar a borra ou o “pé”, como dizia a minha avó. Recordo o cheiro da
“matula”, um trapinho, dos que ficavam da costura, embebido nos restos do
azeite de fritar e que se punha, logo pela manhã, a arder no meio dos carvões
na fornalha a fim de acender o lume. Era o mesmo cheiro da lamparina de azeite
que a minha avó e a minha mãe acendiam às santas das suas devoções sobre as
cómodas nos quartos de dormir.
Coincidentes no
essencial, as muitas referências à cozinha alentejana convergem num elogio a
uma comunidade muito particular, bem caracterizada, não só pelo valor cultural
da sua gastronomia, como pela sua ligação à terra no trabalho e no lazer, com
grande destaque para o seu cante, pérola única na museografia portuguesa.
O pão e o azeite, o
porco e o borrego, as ervas e os cheiros, são as marcas mais significativas da
gastronomia desta que é a maior região natural do país, a que Estrabão, o
grande geógrafo grego dos finais do século I antes de Cristo, reconheceu como o
paraíso das ervas frescas.
No Prefácio de “O
Comer dos Ganhões. Memórias de Outros Tempos”, de Falcato Alves, editado por
Campo das Letras, Porto, em 1994, Hélder Pacheco é mais um a denunciar a
condição de gente explorada dos camponeses do Alentejo, ao escrever que enganam
a «magreza do caldo com ouropéis mágicos de ervas, cheiros e misturas que dão
sabores disfarceiros das pobrezas» e a lembrar os «comeres frugais feitos de
coisas simples do dia-a-dia e do que as pessoas tinham à mão». E porque ervas e
cheiros foram bens que a natureza nunca lhe negou, o alentejano aprendeu a usar
produtos simples e pobres na feitura de confecções aceites como uma
manifestação cultural cada vez mais divulgada e reconhecida. Como dizia o
professor Orlando Ribeiro, para os alentejanos, «comer foi, acima de tudo,
encher a barriga e iludir a sensação de fome» e a fome, como todos sabemos,
aguça o engenho. Sem qualquer conduto a “açorda de mão no bolso”, como lhe
chamei, só precisava da mão que levava a colher à boca, matava a fome e
alegrava a casa com os saborosos aromas do alho e dos poejos.
Mercê de uma atitude
cultural mais esclarecida e alargada, no decurso das últimas décadas, e como
resultado de apoios e encorajamentos vários, a cozinha alentejana de hoje está,
felizmente, a retomar a sua condição de cozinha rica na variedade dos produtos
naturais utilizados e nas maneiras de os confeccionar.
Imagem de uma terra de
grandes planuras e lonjuras, queimadas pelo sol de Verão e pelas geadas de
Inverno, e de aldeias e montes brilhantes na luz da cal, a gastronomia
alentejana tem sido uma nota particularmente resistente ao tempo e às
influências que constantemente lhe chegam do exterior, representando um
património etnográfico de grande valia. Com efeito, as confecções culinárias
alentejanas, algumas com mais de mil anos, na sua singularidade e
intemporalidade, sobreviveram e afirmam-se no presente, sem perda de
identidade, sendo hoje um importante recurso em termos de oferta turística.
É esta mesma cozinha
que está a ser servida pelos restaurantes não só do Alentejo como por alguns
fora dele, em resposta a uma clientela conhecedora, em crescimento, a
testemunhar o sucesso reconhecido deste renascer a que felizmente se assiste.
Em contraste com este esplendor da cozinha que criaram, muitos alentejanos, nos
campos e nas cidades, começam, de novo, a pôr menos azeite nas açordas e menos
febras nas migas, substituindo-as por toucinho e farinheira, mas o essencial
dos aromas e dos sabores continuarão a ser os mesmos.
Num tempo social
preocupante que estamos a viver, agravado por carências e necessidades
amplamente apontadas, a cozinha alentejana, experiente de um passado de
dificuldades, vai continuar a tirar proveito dos produtos alimentares ao seu
alcance, onde, para além dos que se podem produzir, há todos os que a terra nos
oferece e, entre eles estão as beldroegas, as acelgas e as labaças, os cardos,
os espargos, as cilarcas e uma variedade de cheiros, com destaque para os dois
muito nossos, o poejo e a hortelã da ribeira, tantas vezes usados no propósito
de compensar a falta de condutos.
Galopim de Carvalho