terça-feira, 11 de novembro de 2014

AROMAS E SABORES DO ALENTEJO - 1





Com aromas e sabores trazidos, entre outros, pelos ocupantes romano e visigótico e, depois, pelo invasor muçulmano, a cozinha do Alentejo, a par dos seus cantares, é uma expressão cultural bem conhecida e hoje devidamente apreciada. O povo que aqui se fixou, mistura dos que por aqui passaram ou aqui se instalaram durante séculos, descobriu e aperfeiçoou, ao longo de gerações, “comeres” que foram transformando o simples acto de ingerir os alimentos, num outro marcado pelo prazer dos sentidos enriquecido pelo da convivência.
Como lembrou o saudoso Alfredo Saramago no seu livro “Gastronomia do Alentejo. Concurso de Cozinha Alentejana — As Melhores Receitas”, editado pela Câmara Municipal de Évora, em 2001, desde muito cedo, o alentejano entendeu que comer era, não só, um acto necessário e imperativo de sobrevivência, como também uma forma superior de contentamento e é por isso que, quase sempre, há cante no começo, a meio ou no fim das suas confraternizações à mesa.
São muitas as referências aos aromas e aos sabores da cozinha alentejana e uma delas, testemunho de um profundo conhecimento do tema, é a que saiu da pena do meu conterrâneo e amigo, Manuel Fialho, no livro que publicou em 1992, “Cozinha regional do Alentejo”, editado pela Europa-América, onde se lê: Aproveitando ao máximo a riqueza dos seus recursos e sabendo compensar com extraordinária habilidade as suas limitações, o alentejano criou uma cozinha única, sólida, nutritiva e surpreendentemente saborosa, que não é mais, afinal, do que o espelho fiel da sua própria maneira de ser.
Uma outra afirmação de idêntico teor, fê-la Monarca Pinheiro em “Terra de Grandes Barrigas Onde Só Há Gente Gorda”, Editora Alentejana, Évora, 1999, referindo-se ao alentejano e à sua tradição regional, escreveu a curta frase que diz tudo, do pouco, soube fazer muito e bem.
Não desejando afirmar-se nem melhor nem pior do que a generalidade da rica cozinha tradicional portuguesa, a que temos no Alentejo é, quanto a mim, substancialmente diferente. Como qualquer alentejano da minha geração, cresci num tempo em que a confecção dos alimentos tinha por base o lume de chão na grande chaminé, o do fogão de lenha, ou o de carvão, na fornalha ali instalada, sem o suporte conserveiro da arca congeladora, então sabiamente substituída pela salgadeira, numa tradição milenar, e sem frigorífico, obrigando, sobretudo, as mulheres a cozinharem todos os dias. Sem a utilíssima panela de pressão e sem os múltiplos equipamentos da cozinha do presente, fazer almoços e jantares era tarefa de muitas horas no dia dessas mulheres. Foi um tempo em que a cozinha era, em muitos lares, a casa de entrada, de porta sempre aberta durante o dia, como única fonte de luz, e sala de todos os usos, em que a mesa de comer era a mesma em que também se faziam os trabalhos de casa, a mando do professor. Da cozinha da minha infância, para além do mobiliário rudimentar, do poial dos cântaros, do poço com água fresca e um tanto salobra, e de duas oleogravuras, uma do Gago Coutinho e Sacadura Cabral, com o Lusitânia entre eles, e outra da implantação da República, ficaram-me na memória os aromas e os sabores da culinária alentejana. A carne de porco frita em banha, depois de temperada de alho e pimentão, a canja de galinha, as sopas da panela com hortelã, as de tomate no pingo do toucinho e da linguiça e as de cação envinagradas e a libertarem o cheiro dos coentros, a açorda de poejos, as sardinhas de barrica fritas no azeite e as torradas com toucinho cozido, pela manhã, exalavam aromas inconfundíveis e são lembranças de paladares inesquecíveis que não posso deixar de associar aos cantares dos homens que, muitas vezes, na taberna da vizinhança, aos fins de tarde de sábado, se abriam em coro polifónico e trocavam boa parte da magra féria por copos de vinho e petiscos para fazer boca. O pão que então se comia, por tradição e em quantidade, era de trigo ceifado nos nossos campos e tinha ciscos na base trazidos do solo do forno de lenha, ciscos que era preciso raspar antes de cortar as fatias de ir à mesa. Era um pão muito diferente do que hoje se fabrica em fornos eléctricos ou a diesel, em grande parte com trigo importado, sabe Deus se já geneticamente manipulado. O queijo de ovelha, o branco de meia cura e, em especial, o curado, amarelinho e a ressumar olhinhos de gordura, cortados em lasquinhas, à navalha, eram conduto perfumado desse pão-nosso de todos os dias.

                                               Galopim de Carvalho