Com aromas e sabores
trazidos, entre outros, pelos ocupantes romano e visigótico e, depois, pelo
invasor muçulmano, a cozinha do Alentejo, a par dos seus cantares, é uma
expressão cultural bem conhecida e hoje devidamente apreciada. O povo que aqui
se fixou, mistura dos que por aqui passaram ou aqui se instalaram durante
séculos, descobriu e aperfeiçoou, ao longo de gerações, “comeres” que foram
transformando o simples acto de ingerir os alimentos, num outro marcado pelo
prazer dos sentidos enriquecido pelo da convivência.
Como lembrou o saudoso
Alfredo Saramago no seu livro “Gastronomia do Alentejo. Concurso de Cozinha
Alentejana — As Melhores Receitas”, editado pela Câmara Municipal de Évora, em
2001, desde muito cedo, o alentejano entendeu que comer era, não só, um acto
necessário e imperativo de sobrevivência, como também uma forma superior de
contentamento e é por isso que, quase sempre, há cante no começo, a meio ou no
fim das suas confraternizações à mesa.
São muitas as
referências aos aromas e aos sabores da cozinha alentejana e uma delas,
testemunho de um profundo conhecimento do tema, é a que saiu da pena do meu
conterrâneo e amigo, Manuel Fialho, no livro que publicou em 1992, “Cozinha
regional do Alentejo”, editado pela Europa-América, onde se lê: Aproveitando ao
máximo a riqueza dos seus recursos e sabendo compensar com extraordinária
habilidade as suas limitações, o alentejano criou uma cozinha única, sólida,
nutritiva e surpreendentemente saborosa, que não é mais, afinal, do que o
espelho fiel da sua própria maneira de ser.
Uma outra afirmação de
idêntico teor, fê-la Monarca Pinheiro em “Terra de Grandes Barrigas Onde Só Há
Gente Gorda”, Editora Alentejana, Évora, 1999, referindo-se ao alentejano e à
sua tradição regional, escreveu a curta frase que diz tudo, do pouco, soube
fazer muito e bem.
Não desejando
afirmar-se nem melhor nem pior do que a generalidade da rica cozinha
tradicional portuguesa, a que temos no Alentejo é, quanto a mim,
substancialmente diferente. Como qualquer alentejano da minha geração, cresci
num tempo em que a confecção dos alimentos tinha por base o lume de chão na
grande chaminé, o do fogão de lenha, ou o de carvão, na fornalha ali instalada,
sem o suporte conserveiro da arca congeladora, então sabiamente substituída
pela salgadeira, numa tradição milenar, e sem frigorífico, obrigando,
sobretudo, as mulheres a cozinharem todos os dias. Sem a utilíssima panela de
pressão e sem os múltiplos equipamentos da cozinha do presente, fazer almoços e
jantares era tarefa de muitas horas no dia dessas mulheres. Foi um tempo em que
a cozinha era, em muitos lares, a casa de entrada, de porta sempre aberta
durante o dia, como única fonte de luz, e sala de todos os usos, em que a mesa
de comer era a mesma em que também se faziam os trabalhos de casa, a mando do
professor. Da cozinha da minha infância, para além do mobiliário rudimentar, do
poial dos cântaros, do poço com água fresca e um tanto salobra, e de duas
oleogravuras, uma do Gago Coutinho e Sacadura Cabral, com o Lusitânia entre eles,
e outra da implantação da República, ficaram-me na memória os aromas e os
sabores da culinária alentejana. A carne de porco frita em banha, depois de
temperada de alho e pimentão, a canja de galinha, as sopas da panela com
hortelã, as de tomate no pingo do toucinho e da linguiça e as de cação
envinagradas e a libertarem o cheiro dos coentros, a açorda de poejos, as
sardinhas de barrica fritas no azeite e as torradas com toucinho cozido, pela
manhã, exalavam aromas inconfundíveis e são lembranças de paladares
inesquecíveis que não posso deixar de associar aos cantares dos homens que,
muitas vezes, na taberna da vizinhança, aos fins de tarde de sábado, se abriam
em coro polifónico e trocavam boa parte da magra féria por copos de vinho e
petiscos para fazer boca. O pão que então se comia, por tradição e em
quantidade, era de trigo ceifado nos nossos campos e tinha ciscos na base
trazidos do solo do forno de lenha, ciscos que era preciso raspar antes de
cortar as fatias de ir à mesa. Era um pão muito diferente do que hoje se
fabrica em fornos eléctricos ou a diesel, em grande parte com trigo importado,
sabe Deus se já geneticamente manipulado. O queijo de ovelha, o branco de meia
cura e, em especial, o curado, amarelinho e a ressumar olhinhos de gordura,
cortados em lasquinhas, à navalha, eram conduto perfumado desse pão-nosso de
todos os dias.
Galopim de Carvalho