terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

O ENSINO MÚTUO - IV



                O testemunho de J. Silvestre Ribeiro

O período convulsivo das lutas consequentes das invasões estrangeiras pôs em evidência as dificuldades resultantes do analfabetismo existente. Ninguém melhor que a organização militar poderia então responder a este desafio, apesar de ser vulgar o conceito então divulgado de que os conhecimentos literários só eram necessários ao 1º sargento que respondia pela companhia, podendo os oficiais ser analfabetos.
O testemunho de José Silvestre Ribeiro (1807-1891) confirma o funcionamento e a eficiência das Escolas pelo Método do Ensino Mútuo, relatando um episódio da sua vida escolar ao ver-se forçado a desistir da escola régia existente na cidade de Castelo Branco, por troca com a Escola Regimental local.
Vejamos os termos exactos em que o eminente político, ensaísta e historiador nos exprime a sua leitura do facto:
“ Quando na cidade de Castelo Branco se abriu a escola regimental de cavalaria num. 11, em virtude da providência governativa que registámos, alguns dos filhos dos paizanos passaram immediatamente da aula regia civil para a militar, como felizmente era permittido. D’esse numero foi o que ôra traça estas linhas; e com toda a razão se effeituou essa passagem.
Era summamente severo e aspero o professor regio de primeiras letras da mencionada cidade, se bem que intelligente e habil . Por minha parte direi, que a tal ponto me sentia repassado de susto, ao vel-o, e mormente quando a mim se dirigia no tomar ou explicar a lição, que cheguei a crear uma repugnancia invencivel ao estudo, e a fazer perder a meus paes a esperança de que eu podesse jamais saber ler, escrever e contar.
Quiz, porém, a minha boa sorte que se abrisse a aula do regimento de cavallaria num. 11, estacionado por aquelle tempo e ainda longos annos depois na indicada cidade. Para a nova escola fui eu logo mandado pela minha familia, que avisadamente aproveitou a previdente permissão de serem admittidos os filhos dos paizanos.
Uma revolução cabal se operou na minha pequenina individualidade. Desde logo tive a satisfação de crear amor ao estudo, e de frequentar sem esforço, antes com suave gosto a escola, que me parecia já um ceo aberto.
A quem devia eu tamanha ventura ? Às maneiras affaveis, paternaes, e devo dizel-o, verdadeiramente caritativas do professor militar, a quem confiada a regencia da cadeira, o sargento de cavallaria num. 11, Antonio José Rodrigues.

                     Vede da natureza o desconcerto

O professor civil tinha a aspereza de um homem de guerra; o militar imitava a mansidão preconizada nas memoráveis palavras: Sinite parvulos venire ad me
Antonio José Rodrigues era dotado de uma bondade, de uma paciência, de uma dedicação admiravel, que o tornavam muito proprio para encaminhar a infancia na aprendizagem dos primeiros rudimentos das lettras. Principalmente o caracterisava uma disposição muito decidida para ensinar os filhos de familias humildes e pobres. Dir-se-ia que os seus desvelos cresciam na proporção do desvalimento dos discipulos”(…)
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  - Pode conjecturar-se que, não obstante a inteligência, faltasse ao mestre a preparação técnica, e didáctico-pedagógica, uma vez que foi do número dos recrutados por exame ad hoc e não existirem à data escolas de formação....
  - “Deixai vir até mim as crianças”
  - RIBEIRO, José Silvestre - HISTORIA DOS ESTABELECIMENTOS SCIENTIFICOS LITTERARIS E ARTISTICOS de PORTUGAL nos sucessivos Reinados da Monarquia - obra monumentoal de 18 volumes - TYPOGRAPHIA DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS, LISBOA -  1871-1891.
transcrição retirada do Tomo III, 1873, pp.225-226.

                                              Francisco Goulão