Toda a nossa vida é
uma aprendizagem. Aprendemos cedo a levar a colher à boca, aprendemos a andar,
a ler, a escrever e a recitar a tabuada, aprendemos a crescer, a viver em
sociedade e, até, a envelhecer. Desde que nasce, a criança é uma “máquina de
aprender”. Como nos animais superiores, brincar é, para esta etapa inicial do
ser humano, a via natural de aprendizagem, quer por si próprio, observando o
mundo à sua volta, quer através do que lhe seja ensinado.
Entra aqui o papel dos
pais, mas todos sabemos como é comprovadamente baixo o nível cultural de uma
grande parcela da população portuguesa e como é grande a sua iliteracia em
muitos domínios dos conhecimentos ditos das ciências e das humanidades. Nesta
realidade, cabe aos educadores do ensino pré-escolar e aos professores do
básico (em especial) conduzir os infantis e juvenis entregues à sua
responsabilidade a aprenderem a gostar de saber.
Terminada a
licenciatura, em 1961, e sem qualquer preparação pedagógica para o ensino,
comecei imediatamente a leccionar na antiga Secção de Mineralogia e Geologia da
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, como segundo assistente, em
aulas práticas. Nos últimos tempos de uma cristalografia essencialmente
morfológica e geométrica, baseada nas medidas de ângulos entre as faces dos
cristais, e no começo de uma outra cristalografia, dita estrutural, a penetrar
no âmago da matéria cristalina e da física do estado sólido, fundamentada nos
arranjos tridimensionais dos respectivos átomos, tive à minha responsabilidade
as aulas práticas de Cristalografia e de Mineralogia, sob a orientação do
titular da cadeira, então o Doutor Rodrigo Boto, um compêndio vivo nestas
matérias. Com ele ganhei um gosto especial pelo estudo dos minerais, uma
semente que guardei ao longo dos anos e que, mais tarde, deu os seus frutos nos
vinte anos (1983-2003) em que tive a meu cargo o sector de Mineralogia e
Geologia do Museu Nacional de História Natural da mesma Universidade. Só mais
tarde, após o doutoramento, em 1968, me iniciei na regência de aulas teóricas.
Os tempos eram outros e os jovens docentes eram preparados para prestar serviço
na maioria das disciplinas da licenciatura. Da Cristalografia, Mineralogia e
Petrologia, passando pela Geologia, Paleontologia e Geomorfologia, Estratigrafia
e Geo-história, à Sedimentologia e Jazigos Minerais, quer em trabalhos práticos
no laboratório e no campo, quer em aulas teóricas, em auditórios repletos de
alunos, os docentes dos anos 60 e 70 eram conduzidos a uma visão ecléctica da
sua área científica.
Um tal ecletismo
estava bem patente nas modalidades de doutoramento e de agregação de então que,
para além das respectivas dissertações, incluíam provas teóricas e práticas
incidindo sobre a totalidade das disciplinas da respectiva área. Como hoje, a
par da investigação científica, o docente da minha geração criava a sua própria
pedagogia. Definia os conteúdos das suas cadeiras, regia-as a seu modo e, no
final do ano, examinava os seus próprios alunos.
Ao iniciar funções
docentes e, como disse, sem qualquer formação pedagógica, era minha convicção,
que confirmei ao longo dos anos, que aprender a gostar de saber, qualquer que
seja o nível no sistema educacional, é uma das chaves que abre o caminho ao
sucesso escolar. Os profissionais de ensino têm de ter artes (por vocação
própria ou porque para tal foram ensinados) de levar os educandos, a gostarem
das matérias que têm, por dever, transmitir-lhes, a terem prazer no convívio
com ele e, assim, sentirem a escola como algo importante nas suas vidas. Mas há
outras chaves para o referido sucesso a considerar, sobretudo, face aos alunos
mais crescidos, nomeadamente, nos ensino secundário e universitário, que também
a experiência me ensinou. Uma é conseguir inculcar nele a consciência do dever
cívico de estudar, levando-os a tomarem consciência do privilégio que tinham de
usufruir da condição de estudante numa sociedade onde milhares de jovens
permaneciam privados dela. A outra chave não menos importante é estimular-lhe a
autoestima. Fundamental no binómio ensino/aprendizagem, compete, em grande
parte, ao docente conduzir o aluno nesses três sentidos. Quaisquer que sejam as
matérias em causa ou os níveis de escolaridade e etário do discente, estas
chaves fazem dele alguém que que tem gosto em aprender, que frequenta a escola
com prazer, que encara o estudo como um dever de cidadania e tem brio na sua
condição de estudante. Para tal, o professor tem de conseguir estabelecer com o
aluno uma aproximação de confiança e afectividade mútuas que lhe permita
actuar, com êxito, nestas vertentes. Foi assim, durante quarenta anos, a minha
relação com os muitos milhares de alunos com quem troquei saberes e afectos.
Essa tripla condição,
que está ausente num número infelizmente muito grande dos rapazes e raparigas
das nossas escolas, pudemos imaginá-la, por exemplo, nos alunos ucranianos que,
na viragem do século, aqui chegaram com os pais, aquando das primeiras vagas de
imigrantes vindos de um país onde esses valores, devo concluir, são uma
realidade.
Numa época em que os
estudantes universitários faltavam muito às aulas teóricas, aulas que, em
alguns casos, eram perfeitamente substituíveis pela correspondente sebenta
(hoje, felizmente, em vias de desaparição), a grande maioria dos meus alunos
assistia às minhas aulas do primeiro ao último dia. Isto porque o
relacionamento que estabeleci com eles foi sempre de cordialidade, simpatia e
afecto, pautado por respeito mutuo e pelo trabalho que fazíamos em conjunto. O
facto de, frequentemente, sairmos para o campo, em trabalho inerente à nossa
licenciatura, comendo o farnel em conjunto, sentados no chão, foi sempre um
elemento potenciador dessa aproximação.
Por razões diversas,
umas conhecidas, outras não, é frequente numa qualquer turma haver um, dois ou
mais alunos menos motivados e visivelmente desinteressados das matérias em
apresentação. Face a esses, logo identificados nas primeiras aulas, adoptei uma
estratégia que quase sempre se mostrou eficaz. Dava-lhes mais atenção,
procurando estabelecer com eles um relacionamento de simpatia, que não era
difícil transformar em amizade, e lhes tornava agradável o convívio comigo na
sala de aula. Colocava-lhes problemas simples, ajudando-os, se necessário, a
resolvê-los sem que se dessem conta dessa ajuda. Posto isto, elogiava-os na
presença dos colegas, dava-lhes consideração e tratamento que acabava por os
estimular a estudar e, assim, continuarem a merecer essa consideração. O
resultado deste procedimento foi, quase sempre, ganharem autoestima e gosto
pelas matérias em estudo que, como é por demais sabido, são sempre
interessantes e, até, bonitas para quem as conhece.
Galopim de Carvalho