domingo, 11 de outubro de 2015

GOSTAR DE SABER, DEVER CÍVICO DE ESTUDAR E AUTO-ESTIMA




Toda a nossa vida é uma aprendizagem. Aprendemos cedo a levar a colher à boca, aprendemos a andar, a ler, a escrever e a recitar a tabuada, aprendemos a crescer, a viver em sociedade e, até, a envelhecer. Desde que nasce, a criança é uma “máquina de aprender”. Como nos animais superiores, brincar é, para esta etapa inicial do ser humano, a via natural de aprendizagem, quer por si próprio, observando o mundo à sua volta, quer através do que lhe seja ensinado.
Entra aqui o papel dos pais, mas todos sabemos como é comprovadamente baixo o nível cultural de uma grande parcela da população portuguesa e como é grande a sua iliteracia em muitos domínios dos conhecimentos ditos das ciências e das humanidades. Nesta realidade, cabe aos educadores do ensino pré-escolar e aos professores do básico (em especial) conduzir os infantis e juvenis entregues à sua responsabilidade a aprenderem a gostar de saber.
Terminada a licenciatura, em 1961, e sem qualquer preparação pedagógica para o ensino, comecei imediatamente a leccionar na antiga Secção de Mineralogia e Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, como segundo assistente, em aulas práticas. Nos últimos tempos de uma cristalografia essencialmente morfológica e geométrica, baseada nas medidas de ângulos entre as faces dos cristais, e no começo de uma outra cristalografia, dita estrutural, a penetrar no âmago da matéria cristalina e da física do estado sólido, fundamentada nos arranjos tridimensionais dos respectivos átomos, tive à minha responsabilidade as aulas práticas de Cristalografia e de Mineralogia, sob a orientação do titular da cadeira, então o Doutor Rodrigo Boto, um compêndio vivo nestas matérias. Com ele ganhei um gosto especial pelo estudo dos minerais, uma semente que guardei ao longo dos anos e que, mais tarde, deu os seus frutos nos vinte anos (1983-2003) em que tive a meu cargo o sector de Mineralogia e Geologia do Museu Nacional de História Natural da mesma Universidade. Só mais tarde, após o doutoramento, em 1968, me iniciei na regência de aulas teóricas. Os tempos eram outros e os jovens docentes eram preparados para prestar serviço na maioria das disciplinas da licenciatura. Da Cristalografia, Mineralogia e Petrologia, passando pela Geologia, Paleontologia e Geomorfologia, Estratigrafia e Geo-história, à Sedimentologia e Jazigos Minerais, quer em trabalhos práticos no laboratório e no campo, quer em aulas teóricas, em auditórios repletos de alunos, os docentes dos anos 60 e 70 eram conduzidos a uma visão ecléctica da sua área científica.
Um tal ecletismo estava bem patente nas modalidades de doutoramento e de agregação de então que, para além das respectivas dissertações, incluíam provas teóricas e práticas incidindo sobre a totalidade das disciplinas da respectiva área. Como hoje, a par da investigação científica, o docente da minha geração criava a sua própria pedagogia. Definia os conteúdos das suas cadeiras, regia-as a seu modo e, no final do ano, examinava os seus próprios alunos.
Ao iniciar funções docentes e, como disse, sem qualquer formação pedagógica, era minha convicção, que confirmei ao longo dos anos, que aprender a gostar de saber, qualquer que seja o nível no sistema educacional, é uma das chaves que abre o caminho ao sucesso escolar. Os profissionais de ensino têm de ter artes (por vocação própria ou porque para tal foram ensinados) de levar os educandos, a gostarem das matérias que têm, por dever, transmitir-lhes, a terem prazer no convívio com ele e, assim, sentirem a escola como algo importante nas suas vidas. Mas há outras chaves para o referido sucesso a considerar, sobretudo, face aos alunos mais crescidos, nomeadamente, nos ensino secundário e universitário, que também a experiência me ensinou. Uma é conseguir inculcar nele a consciência do dever cívico de estudar, levando-os a tomarem consciência do privilégio que tinham de usufruir da condição de estudante numa sociedade onde milhares de jovens permaneciam privados dela. A outra chave não menos importante é estimular-lhe a autoestima. Fundamental no binómio ensino/aprendizagem, compete, em grande parte, ao docente conduzir o aluno nesses três sentidos. Quaisquer que sejam as matérias em causa ou os níveis de escolaridade e etário do discente, estas chaves fazem dele alguém que que tem gosto em aprender, que frequenta a escola com prazer, que encara o estudo como um dever de cidadania e tem brio na sua condição de estudante. Para tal, o professor tem de conseguir estabelecer com o aluno uma aproximação de confiança e afectividade mútuas que lhe permita actuar, com êxito, nestas vertentes. Foi assim, durante quarenta anos, a minha relação com os muitos milhares de alunos com quem troquei saberes e afectos.
Essa tripla condição, que está ausente num número infelizmente muito grande dos rapazes e raparigas das nossas escolas, pudemos imaginá-la, por exemplo, nos alunos ucranianos que, na viragem do século, aqui chegaram com os pais, aquando das primeiras vagas de imigrantes vindos de um país onde esses valores, devo concluir, são uma realidade.
Numa época em que os estudantes universitários faltavam muito às aulas teóricas, aulas que, em alguns casos, eram perfeitamente substituíveis pela correspondente sebenta (hoje, felizmente, em vias de desaparição), a grande maioria dos meus alunos assistia às minhas aulas do primeiro ao último dia. Isto porque o relacionamento que estabeleci com eles foi sempre de cordialidade, simpatia e afecto, pautado por respeito mutuo e pelo trabalho que fazíamos em conjunto. O facto de, frequentemente, sairmos para o campo, em trabalho inerente à nossa licenciatura, comendo o farnel em conjunto, sentados no chão, foi sempre um elemento potenciador dessa aproximação.
Por razões diversas, umas conhecidas, outras não, é frequente numa qualquer turma haver um, dois ou mais alunos menos motivados e visivelmente desinteressados das matérias em apresentação. Face a esses, logo identificados nas primeiras aulas, adoptei uma estratégia que quase sempre se mostrou eficaz. Dava-lhes mais atenção, procurando estabelecer com eles um relacionamento de simpatia, que não era difícil transformar em amizade, e lhes tornava agradável o convívio comigo na sala de aula. Colocava-lhes problemas simples, ajudando-os, se necessário, a resolvê-los sem que se dessem conta dessa ajuda. Posto isto, elogiava-os na presença dos colegas, dava-lhes consideração e tratamento que acabava por os estimular a estudar e, assim, continuarem a merecer essa consideração. O resultado deste procedimento foi, quase sempre, ganharem autoestima e gosto pelas matérias em estudo que, como é por demais sabido, são sempre interessantes e, até, bonitas para quem as conhece.


                                                       Galopim de Carvalho