(Imagem retirada de
www.publico.pt)
A
propósito da situação pouco edificante decorrente dos erros, incongruências e
imprecisões detectado no questionário de geologia do Exame Nacional de Bilogia
e Geologia do passado dia 18 de Junho e denunciados publicamente, parece-me
oportuno deixar aqui algumas reflexões, síntese repetitiva das muitas vindas a
público, expendidas ao longo de décadas, por diversos elementos da comunidade
dos geólogos, na qual me incluo, e que sou levado a concluir, continuam a não
despertar as desejáveis atenção e preocupação dos responsáveis.
O
caso do referido exame, aberrante e lamentável, questiona, não só a competência
do ou dos que, ao serviço do Ministério da Educação, elaboraram o dito
questionário, mas também e sobretudo, o bom nome da respectiva hierarquia.
Numa
longa caminhada, tão velha quanto a humanidade, a geologia, no seu todo, foi
sendo descoberta pelo Homem, que tirou dos seus ensinamentos os proveitos que
lhe permitiram progredir da simples busca do sílex à prospecção e exploração de
fontes de energia e de minerais estratégicos essenciais às modernas tecnologias
da sociedade do presente.
Nesta
caminhada, estabeleceu relações de causa-efeito entre os objectos e os
mecanismos que lhe foram dados observar no mundo físico que foi o seu.
Experimentou o que pôde experimentar, deduziu o que conseguiu deduzir, inferiu
o que soube inferir e transmitiu, aos descendentes, o saber que foi acumulando,
servindo-se para tal da linguagem de que dispunha, nos primeiros milhões de
anos, o gesto e, só mais tarde e progressivamente, a fala. Num muito rudimentar
esboço de ciência, tudo isto o Homem fez antes dos sumérios, chineses e
egípcios terem iniciado a arte de escrever.
A história desta
disciplina científica radica nas mesmas origens da de outros domínios da
ciência. Temos de ir buscá-la às civilizações chinesa, babilónica, egípcia e
outras. Mas é, sobretudo, nos filósofos, geógrafos, astrónomos e poetas gregos
e latinos que encontramos os fundamentos que deram suporte à ciência e à
tecnologia de que hoje, absolutamente, dependemos.
A geologia tem crescido nestes
contextos, sendo hoje um dos pilares da sociedade moderna, constituindo
alavancas poderosas para o bem e também, não o esqueçamos, para o mal, ao
serviço da humanidade.
A
geologia foi um dos domínios do conhecimento científico cuja competição e cujos
conflitos com a religião (em particular, com a Igreja católica) foram mais
graves e violentos. Cultivar esta disciplina em moldes científicos, nos tempos
anteriores ao iluminismo nascido da elite intelectual europeia de finais do
século XVIII, teve os seus riscos. E não foram pequenos. Falar ou escrever
sobre a origem da Terra e as suas transformações ou sobre o nascimento da vida
e a evolução das espécies, incluindo o surgimento do homem, tinha limites
impostos pelos zeladores da Fé. Fazê-lo à luz da razão e, inevitavelmente, em
confronto com as “verdades” bíblicas e com os dogmas decretados pela Santa Sé,
não foi uma caminhada fácil. Foi, sim, causa de perseguições, sofrimento e, não
raras vezes, sacrifício da própria vida. Basta lembrar Averrois, no século XII,
Giordano Bruno, no XVI, e Galileu, no XVII, para nos darmos conta dos escolhos
postos ao progresso desta e de outras ciências.
Cautelosa
e timidamente, os pioneiros do conhecimento geológico propunham as suas explicações,
sujeitando-se ao risco de uma tal ousadia. Como é vulgo dizer-se, a ciência e a
religião são como a água e o azeite. Não se misturam. Coexistem, mas cada uma
no seu campo. É evidente que as atitudes de uma e de outra perante as entidades
e os fenómenos naturais, são geradoras de confronto, hoje razoavelmente
civilizado e pacífico nas sociedades democráticas, mas conflituoso e, tantas
vezes, cruel e desumano no passado.
Na
sociedade do presente a geologia já ganhou, em muitos países, estatuto de ciência
de grandeza compatível com a sua real importância, o que não é o caso em
Portugal, onde este ramo do saber permanece subalternizado nos currículos
escolares e continua arredado da cultura geral dos portugueses, dos mais
humildes e iletrados às elites intelectuais mais iluminadas.
A
vida profissional permitiu-me, ao longo de décadas, conviver, algumas vezes de
muito perto, com as mais altas figuras nacionais, dos chefes de estado aos dos
governos central e local, com ministros da educação e outros, com parlamentares
e figuras gradas dos partidos políticos, com os mais prestigiados jornalistas e
comentadores dos jornais, da rádio e da televisão (quase todos gente do domínio
das humanidades), e pude, salvo uma ou outra excepção, constatar esta triste
realidade.
É,
pois, este o panorama da geologia no nosso país, pelo que o lamentável caso do
referido exame, deve ser considerado como uma consequência desta mesma
realidade.
Galopim
de Carvalho