– Mas do que é que tu gostas, Ana Isabel!? Tirando o bife, o
frango e as batatas fritas, de que é que tu gostas, rapariga? Não comes feijão
porque enfarta e com o grão é a mesma desculpa. À massa chamas “massunga” e não
a queres, o arroz dizes que é para os pintos e eu que o coma, e às sopas chamas
“soponas” e não lhes tocas. Afinal o que é que te posso fazer?
– Tudo, menos sopas de pão molhado. – Respondeu a neta, com
um lindo sorriso. Gosto de pão mesmo que seja duro e sem manteiga nem nada, pão
seco como se diz cá no monte. Gosto de sopa, mas é só daquela de caldo, em
puré, que é só de engolir como o leite, sem mastigar. A sopa que nos dão no
colégio também não presta. A gente chama-lhe “sopa de lixo”. Gosto de
“hamburgers” e de cachorros, mas isso não há cá, nem a avó sabe o que é.
– Sei, sim senhor! – Atalhou a D. Rosalina – Uns são bifes de
carne moída. Já cá se vendem no talho e os cachorros são salsichas no pão. Sei
muito bem o que é! Quando fomos à Expo, foi o nosso almoço. Não havia sítio
para uma pessoa se sentar. Posso muito bem fazer-te, mas isso não é comida de
gente.
A Ana Isabel passava todas as férias com os avós paternos no
Monte da Cegonha Grande, entre Pegões e Vendas Novas. Férias grandes e férias
pequenas, no Natal e na Páscoa, não falhava uma. Às vezes lá tinha de passar a
consoada em Lisboa, com a família da mãe, mas vinha logo que podia, pedindo que
a trouxessem para o pé da avó Rosalina onde, mesmo no frio do Inverno, repartia
os dias entre a rua e a grande chaminé da cozinha, com lume convidativo, feliz
como um pardal, no dizer do avô, até que o pai a viesse buscar, quase sempre no
último dia.
Como a maioria dos alfacinhas, a Ana Isabel detestava sopas
de pão.
– Fazem-me vómitos. – Dizia, de cara franzida.
As sopas de pão eram as únicas coisas que não a identificavam
com o Alentejo. Ali tudo era bom e adorava estes avós. Gostava das pessoas do
campo, dos animais, da vida que ali se vivia. Só não podia com as malditas
sopas. Era a açorda, a sopa da panela, a sopa de tomate, a sopa de peixe e
todas as outras. E eram tantas! Todos os dias! Muitas vezes, ao almoço e ao
jantar. Tudo pão molhado. Uma decepção! Apreciava os aromas e os sabores do
coentro e do poejo, mas aquela visão de pão embebido no caldo trazia-lhe à
memória uma «açorda» que a mãe fizera, horrível, com o pão de carcaça, numa
tentativa de imitar a já de si adulterada “sopa alentejana” que se faz nos
restaurantes de Lisboa. Acontece que, um belo dia, num domingo, a mãe da Ana Isabel,
com a maior boa vontade do mundo, tentara oferecer ao marido um cheirinho de
açorda da sua (dele) criação, mas, como não tinha coentros, fê-la com salsa,
esqueceu-se do alho e escorregou-lhe a mão no óleo, pois quase não usava
azeite. Uma mixórdia gorda, sem sabor e espapaçada. Uma mistela horrorosa!
Simpaticamente, o marido comeu sem comentários, mas a filha, não. Devolveu ao
prato a única colherada que levara à boca e não houve quem a convencesse a
comer. A mãe é que nunca mais se dispôs a repetir a experiência. Ele que
matasse as saudades quando fosse a casa dos pais.
Estava aqui a origem da grande aversão da criança pelas suas
tão apetitosas sopas. Tinha pois de conciliar o enorme prazer da alegre e terna
companhia da sua neta, com a “ralação” diária de lhe fazer comida do seu
agrado.
Numa das minhas habituais andanças pelos campos, de há muito
conhecia os caseiros do Monte da Cegonha Grande. Ficava-me no caminho de um
areeiro com interesse para o estudo dos terrenos da grande Bacia do Tejo-Sado. Sempre
falei mais com a mulher, todo o tempo ali à volta da casa, do que com o senhor
Ernesto, sempre afastado nos trabalhos do monte. Só tiveram aquele filho, bom
aluno e trabalhador. Com algum sacrifício, mandaram-no para Lisboa estudar,
onde cursou direito e onde conheceu a Delfina, hoje a mãe da Ana Isabel.
– Esta aqui
é a minha neta. – Disse a D. Rosalina, depois de me retribuir as boas tardes
que lhe dirigi, ao sair do jipe, vinha ela com um franganito nas mãos.
– Anda cá, Nucha, diz boa tarde ao senhor! Vou-lhe fazer uma
canjinha e depois, frango acerejado com batatinhas fritas. É muito “niquenta”
esta linda menina. É um castigo para comer. Sente-se aqui um pouco a descansar,
que eu já lhe vou buscar uma pinga de água fresquinha. – E apontou-me um cadeirão
de verga, à sombra do alpendre.
Morta a sede, devolvi o copo que a minha amiga me trouxera
com água do cântaro, pousando-o no pires que ela, atenciosamente, conservava na
mão.
– Já fez dez anos. Está uma senhorinha. Vai no domingo para o
colégio. Acabam-se as férias e o pai vem cá buscá-la. É um pulinho. Para o
Natal já cá a tenho de volta.
– Aqui é que se está bem. – Interrompeu a Ana Isabel. – Lá no
colégio nem vemos o Sol. – Quando for crescida quero ter um trabalho de andar
no campo, ver árvores e animais.
– Vai lá pôr este copo no poial, faz favor. – Ordenou a avó.
– Tem cuidado não caias! – E, virando-se para mim, – Os pais são advogados. Têm
cartório no Chiado e não dão mãos a medir com tanta clientela. Não têm sábados
nem domingos. São muitos os fins-de-semana em que ela fica sem sair do colégio.
O que vale são as férias. Este ano os pais foram uns oito dias para o sul de
Espanha e ela nem quis ir. Ficou aqui. A mãe é de Lisboa. - Continuou, depois
da menina se ter afastado na companhia de uma amiguinha. - A minha “genra” foi
sempre rapariga de estudo. Primeiro o colégio, depois a Universidade. Nunca
aprendeu nada daquilo que é vida de mulher. Hoje, com tanto trabalho que tem
nem dá atenção à casa... nem à filha. Ele é o mesmo. Estão-se a encher de
dinheiro e nem têm tempo para o gastar. Comem fora quase sempre e às vezes,
quando estão mais cansados e já não querem sair, lá mandam vir uma comida feita
para o jantar. Num fim-de-semana, em que vão buscar a menina, almoçam fora e,
ao jantar, o meu filho vai buscar um frango assado, batatas fritas, um bolo ou
um gelado e está feita a festa. É um viver que eu não entendo.
Visivelmente preocupada, a caseira balançava entre uma
tentação incontida de desabafar e o
cuidado de não pôr os filhos em cheque.
– Ele é homem, sabe como é, mas, mesmo assim, não lhe perdoo.
Agora ela, valha-me Nossa Senhora... Ela é que é a mãe. Dá-se muito bem com o
meu filho. Valha-nos isso. Estão mesmo a calhar um para o outro. Minha rica
neta! Se não fosse eu e o avô, não sei o que seria dela. Que Deus me dê vida
para a acabar de criar. É por isso tudo que ela adora estar aqui. Mal entra de
férias, ó pés para que vos quero, lá obriga o pai a vir traze-la e só abala
mesmo nas vésperas das aulas. Traz a mochila com tudo o que é preciso para
fazer os trabalhos de casa e, lá nisso, é cumpridora, mais dois ou três livros
para, como ela diz, ler um bocadinho antes de dormir, mas quase nem os abre.
Deliciado, eu escutava a D. Rosalina. Aquela sombra, a
perspectiva de mais um copo de água fresca a saber a barro, uma memória de
infância, e aquele cadeirão bem almofadado dispunham-me ao papel de psiquiatra,
atento ao divagar da minha amiga, ávida que estava de deitar cá para fora tudo
aquilo que lhe apertava a alma.
– De dia não pára – retomou ela o fio à conversa. – Anda por
todo o lado e mexe em tudo. Dá-se com toda a gente, velhos e novos. Tem aí
amigos, rapazes e raparigas do monte que, quando ela cá está, não me largam a
porta. Ontem, trouxeram-lhe um canito. Já lhe tinham dado um gatinho e... toma
lá mais este trabalho para cima da avó. Logo de manhã cedo, ainda antes do
nascer do sol, já cá está em baixo com o avô que é quem lhe prepara o
pequeno-almoço, como ela diz. Aí não me dá trabalho. O pior são as sopas que
uma criança não pode deixar de comer. Depois vai ajudar a tratar dos animais,
que já a conhecem e ficam num alvoroço quando a vêem. A semana passada assistiu
ao nascimento do bezerro. No resto do dia, feitas as obrigações do estudo, tem
sempre ocupação. Os cães não a largam, sempre atrás dela. Ao fim da tarde vai
regar a horta. Regar é como quem diz, vai atrás do avô, descalça, com os pés
nos regos, sempre a falar e a rir.
Na sua incessante e zodiacal caminhada, o Sol franzia-me
agora os olhos, furando por entre as ramadas da glicínia, despertando-me
daquele embalar bucólico. O jipe, uns metros à minha frente, a refrescar à
sombra do telheiro, dizia-me que ainda havia trabalho para fazer.
– Se a senhora me der mais um copinho de água, antes de ir ao
meu trabalho....
– Deixe-se estar aí descansadinho, que a calma ainda é muita.
– E vendo que eu me ajeitava de novo depois daquele outro copo de água, ganhou
alento. – Nem televisão ela vê. Mal janta, vem logo cá para fora brincar com a
rapaziada. Correm, cantam, gritam, eu sei lá. É preciso o avô vir buscá-la e,
mal cai na cama, ferra no sono como um anjo, até de manhã. Se pudesse tinha-a
cá o tempo todo. Quando acabam as férias vai-se a alegria. É a tristeza do céu
cinzento, da chuva e do vazio deste casarão sem ela. O avô não diz nada mas a
gente vê que lhe sente a falta. Diz que vai mandar pôr telefone para não
estarmos assim tão isolados da família, mas eu sei que é para poder falar à
neta e ouvi-lhe a voz.
E, batendo com as mãos nos joelhos e levantando a cabeça, em
jeito de quem reage à tristeza, esta ninha amiga suspirou: – Paciência. O tempo
passa depressa e daqui a uns meses já cá a tenho outra vez.
Galopim
de Carvalho