A propósito dos
trabalhos visando o crescimento artificial da Praia de Dona Ana (Lagos)
ocorre-me lembrar que a adulteração da paisagem física em nome do
desenvolvimento é um facto que está a atingir proporções preocupantes.
Os reflexos no litoral
da intervenção do homem são hoje bem visíveis e as soluções encontradas, para
os minimizar ou eliminar, nem sempre são as melhores. A conclusão a tirar desta
realidade é a de que não se pode continuar a planear o litoral de costas
viradas para os conhecimentos que a ciência já está apta a fornecer. Há, pois,
que saber conviver com o mar e respeitar os seus códigos que já conhecemos com
razoável pormenor. No sentido de minimizar estes inconvenientes, tem-se
recorrido a ensaios realizados em tanques especiais, onde, em modelos
reduzidos, se procuram simular as condições naturais e as alterações a
introduzir, a fim de estudar os seus efeitos. Modernamente, com o
desenvolvimento dos meios informáticos, estão a utilizar-se, com idênticos
propósitos, modelos matemáticos, mais rápidos e menos onerosos.
Seria desejável que
decisores, jornalistas e comentadores falassem a mesma linguagem. Pareceu-me,
pois, útil reunir nestas linhas o essencial do que dizem os estudiosos desta
temática.
Dizem eles que a
geometria e as características dinâmicas desta franja “onde a terra se acaba e
o mar começa” resultam de um conjunto de factores e condicionantes naturais, a
que se têm vindo a sobrepor-se outros, próprios da civilização.
Para além das
oscilações globais do nível do mar, apenas sensíveis em intervalos de tempo que
excedem largamente a nossa longevidade, sobressaem, por serem mais
visíveis: (1) a natureza e a estrutura
das rochas e a sua maior ou menor vulnerabilidade à erosão; (2) o clima, em
especial no que diz respeito à pluviosidade, à temperatura e aos ventos; (3) a
intensidade e orientação das vagas; (4) a amplitude das marés e (5) as correntes marinhas litorais; (6) todo e
qualquer tipo de intervenção humana, como sejam portos, molhes e outros tipos
de enrocamentos, exploração de areias,
barragens (que impedem o fornecimento de inertes), entre outros.
Esperemos que, no que
diz respeito à Praia de Dona Ana, os necessários parâmetros naturais tenham
sido avaliados.
No essencial, o
comportamento desta interface do mar com a terra define-se pelas leis naturais,
ou seja, pelas leis da física e da química, sempre subjacentes aos processos
geológicos, biológicos ou os decorrentes de quaisquer acções do génio humano e
que não podemos, nunca, modificar.
Entende-se por litoral
não só a faixa emersa da linha de costa, geralmente limitada do lado de terra
por uma arriba ou por uma rotura de declive, mas também a faixa imersa,
limitada inferiormente por uma linha abaixo da qual o fundo marinho não é
significativamente perturbado pela ondulação habitual na região (até 1 a 2 m de
altura). Na nossa costa ocidental, este limite inferior ronda a profundidade de
10 m, sendo de 6 m, em média, na costa
algarvia.
No que se refere ao
dinamismo dos processos litorais, destaca-se a ondulação, que não é mais do que
a agitação da camada superficial das águas de uma determinada área do mar (área
de geração) soprada pelo vento. A ondulação transporta quase toda essa energia,
sob a forma de ondas ou vagas, a caminho do litoral. Ao aproximar-se de terra,
e à medida que a profundidade se reduz, a crista da onda torna-se,
progressivamente, assimétrica, tombando para a frente até rebentar. Esta energia acaba, assim, por ser consumida
quer na rebentação, quer nas correntes litorais a que dá origem.
Consequência directa
das interacções gravíticas entre a Terra e os corpos celestes que lhe estão
próximos (em particular o Sol e a Lua), as marés representam uma outra fonte de
energia fornecida às águas do mar. No seu constante e ritmado movimento
ascendente e descendente, avançando e recuando face ao litoral, penetrando nas
reentrâncias da linha de costa, para delas sair e tornar a entrar, num vaivém
interminável, as marés são geradoras de correntes susceptíveis de exercer
erosão, transporte e redeposição de sedimentos, quer junto ao litoral, onde são
mais visíveis, e conhecidas por correntes de maré, quer na plataforma
continental, nomeadamente no seu bordo distal, na transição com a vertente
continental.
Para além destas
correntes, outras há com interferência na morfologia e na sedimentação
litorais. Entre elas destacam-se as
geradas pela rotação da Terra e por diferenças de temperatura e de
salinidade.
O vento, a ondulação
dele resultante e as correntes litorais a que dão origem, por um lado e, por
outro, as marés e respectivas correntes são os principais agentes da dinâmica
actuante no litoral e, também, na
plataforma continental (a chamada zona nerítica).
As características
físicas da ondulação (altura, comprimento da onda, período, frequência, etc.)
reflectem a energia disponível e dependem da intensidade do vento, da duração
da sua incidência e da extensão e distância ao litoral de área soprada. Com
poucas perdas de energia durante a propagação, as vagas atingem os litorais,
exercendo aí erosão e transporte de sedimentos. Nos fundos arenosos não
consolidados, situados a profundidades susceptíveis de sofrerem as acções das
vagas, estas remobilizam uma parte mais superficial da cobertura móvel, em geral
areias de quartzo e bioclásticas (conchas de moluscos trituradas), promovendo
ressedimentação muito particular, reconhecida pelas marcas de ondulação (ôndulas) que lhes são próprias.
As vagas,
desencadeadas por acção do vento, transmitem até ao litoral a energia que dele
recebem e têm a sua acção erosiva grandemente potenciada pelo efeito abrasivo
dos materiais (areias, seixos , blocos) que põem em movimento. Em resultado
desta acção formam-se os litorais de erosão, ou catamórficos, caracterizados por
arribas, ou falésias alcantiladas, que recuam à medida que aumenta a plataforma
litoral ou de abrasão marinha. Deste recuo restam como testemunhos pontuações
rochosas como, por exemplo, as que emergem do mar frente à praia de Dona Ana.
Quando é o mar que recua, o litoral diz-se
anamórfico ou de acumulação. Têm aqui lugar a praia, em geral arenosa (mas às
vezes cascalhenta), e as dunas. Na sequência desta regressão do mar, a arriba
fica liberta da erosão das vagas, passando a evoluir em ambiente subaéreo, até
adquirir um perfil de equilíbrio ditado pela natureza e estrutura das rochas e
pelas condições climáticas ambientais.
A praia é, na maior
parte dos casos, uma acumulação instável de areia e algumas vezes de cascalho,
seixos ou calhaus (três modos de referir os clastos mais grosseiros), no geral
arredondados pela abrasão. Representa um ambiente onde o binómio
morfologia-sedimentação se caracteriza por grande instabilidade. Qualquer
modificação natural ou artificial introduzida na morfologia da praia ou no seu
conteúdo sedimentar (areias e, eventualmente, cascalho) tem reflexos no balanço
erosão-sedimentação. Como faixa do
litoral arenoso (algumas vezes de calhaus) exposta às vagas, compreende um
domínio submarino (praia imersa) e outro subaéreo (praia emersa).
A praia imersa
descobre-se na baixa-mar durante as marés vivas e corresponde ao domínio
infralitoral ou infratidal (do inglês tide, que significa maré). Neste domínio,
o perfil do fundo mostra, do mar para a terra, um talude, bancos de rebentação
e uma faixa de espalho da onda. Para o largo segue-se o domínio circalitoral ou
circatidal, na transição para a plataforma continental (offshore) onde só a
ondulação de tempestade tem efeito dinâmico sobre o fundo.
A praia emersa
corresponde ao domínio supralitoral ou supratidal, só ocupado por altura das
marés vivas e durante as tempestades. É o domínio das dunas, dos salgados ou
das marismas, das crostas calcárias ou dolomíticas, das lagunas evaporíticas,
da cimentação vadosa promovida por águas infiltradas superficiais (do latim
vadosus, atravessável a vau).
A praia propriamente
dita (em sentido restrito) corresponde ao domínio intertidal (entre marés).
Dela faz parte a face da praia, ocupada pela rampa de espraio e de ressaca
(situada acima da faixa de espalho da onda), onde se consome grande parte da
sua energia após a rebentação. À rebentação sucede-se o espraio de uma certa
massa de água, que avança sobre a face da praia à chegada da crista, a que se
segue a ressaca ou recuo, que corresponde à chegada da cava.
As praias são,
pois, entidades instáveis. Quando a vaga
incide obliquamente ao litoral, a areia retirada e reposta pelo vaivém das
ondas vai migrando, em ziguezague, numa trajectória serreada, com uma
resultante paralela à linha de costa, no sentido que as condições locais
ditarem, referida entre os profissionais por deriva litoral ou longilitoral,
conhecida entre as nossas gentes do mar por corredoira. Na costa portuguesa, no
litoral arenoso entre Espinho e o Cabo Mondego, atingido por ondulação
maioritariamente do quadrante NW, a deriva tem o sentido norte-sul,
movimentando um a dois milhões de metros cúbicos de areia por ano (1 a 2106
m3/a). Na costa algarvia, esta cifra é bem menor, dez a cem vezes inferior,
sendo aí poente-nascente o sentido da
deriva. O litoral arenoso comporta-se, pois, como um “rio de areia” que corre
ao longo da costa, mais ou menos veloz, transportando maior ou menor carga
sólida. Com uma parte emersa (praia emersa) e outra submersa (praia submersa),
o litoral arenoso mantém-se enquanto os sedimentos, que recebe de “montante”,
compensarem os que perde para “jusante” e para o largo. Esta mobilidade conduz
a perfis transversais de Verão (perfil de acalmia ou de calmaria), com declive
mínimo, diferentes dos de Inverno (perfil de temporal), de mais alta energia,
mais abruptos e com roturas de declive.
Nas situações em que a
ondulação se aproxima perpendicularmente ao litoral, formam-se correntes de
retorno ou agueiros, que deslocam os sedimentos para o largo (impedindo a deriva
litoral), espalhando-os na plataforma continental e/ou permitindo-lhes o escape
para os grandes fundos, através dos canhões submarinos. No caso das praias
assim expostas à vaga, a linha do litoral é uma sucessão de reentrâncias, em
forma de crescente, com a parte côncava virada ao mar. As correntes nestas
praias afastam-se do litoral, pelo que constituem grande perigo para os
banhistas.
Em termos de espaço,
uma praia pode manter-se estável, crescer, recuar ou ser totalmente varrida
pelo mar, consoante o balanço que aí se estabelecer entre a erosão e a
sedimentação. Nestes termos, uma praia minimamente estabilizada indica uma
situação de equilíbrio entre a quantidade de sedimentos que recebe de terra
(das arribas ou através dos rios) ou do mar (através das ondas e da deriva
litoral) e a que lhe é retirada pelo mesmo mar. Com a progressiva construção de
barragens hidroeléctricas nos principais rios, durante o século XX, o litoral
ocidental de Portugal, à semelhança de muitos outros, foi sendo privado da sua
principal fonte de sedimentos terrígenos.
Galopim de Carvalho