Os vestígios mais antigos da
presença dos nossos antepassados em terras do Sul do País remontam ao
Paleolítico e estão representados, em especial, por utensílios em pedra lascada
encontrados, em abundância, nos terraços fluviais de alguns dos seus rios, e
por não menos importantes gravuras rupestres, como as trazidas às primeiras
páginas dos jornais, na sequência dos trabalhos na barragem de Alqueva.
Primeiro como recolectores, apanhando bolotas nos então muito mais cerrados
montados, pescando e caçando, estes nossos longínquos avós acabaram por se
tornar pastores e agricultores. Tal fixação levou à construção dos primeiros
povoados nas colinas sobranceiras aos principais cursos de água. A densidade de
construções megalíticas (antas, menhires e cromeleques), característica ímpar
desta região, testemunha a importância da sociedade agropastoril que aqui teve
berço há mais de 5000 anos.
Durante mais ou menos tempo,
ligures, celtas, fenícios, gregos, cartagineses e romanos, ocuparam terras do
Algarve e do Alentejo ou por aqui passaram, uns nas suas rotas comerciais e
outros em busca do ouro, da prata, do cobre e do estanho, com particular relevo
para os romanos. Estes, chegados no século III a.C., deixaram-nos importantes
marcas civilizacionais da sua ocupação e do domínio político que exerceram durante,
pelo menos, meio milénio. Antes de serem Alentejo e Algarve, estas terras
constituíram parte da Hispania Ulterior (a
mais afastada, em oposição a Hispania
Citerior) na sequência da divisão administrativa criada na Península pelo
invasor. Estas mesmas terras foram, mais tarde, a metade sul da Lusitania, a mais ocidental das três
províncias ibéricas do Império Romano (Lusitania,
Betica e Tarraconensis).
Outra importante presença,
que ainda hoje se faz sentir, foi a muçulmana, iniciada no século VIII com a
conquista de Mértola, por Muçá ben Nusayr, pondo fim à dominação visigótica, a
última das invasões levadas a efeito por povos do norte da Europa (vândalos,
suevos e visigodos, entre outros), habitualmente referidos como bárbaros (a palavra
provém do
grego antigo,
βάρβαρος, que significa
não
grego). A ocupação
muçulmana teve aqui uma longa permanência, cerca de cinco séculos, que só
terminou com a reconquista cristã do Reino de Portugal, no século XIII.
Com a islamização, estas
terras fizeram parte do Garb, que quer
dizer Ocidente, designação naturalmente usada pelos que vinham de oriente,
neste caso, os invasores árabes. Mais precisamente, o seu nome foi al Garb al-Andalus, que significa “o ocidente da Hispânia”, que incluía,
não só o Algarve como também o Alentejo e a Andaluzia, a oriente do Guadiana.
A civilização muçulmana deixou aqui
muito dos seus saberes, não só os tidos por eruditos, como os do melhor
aproveitamento da terra. À unidade de coabitação entre a Andaluzia, o Alentejo
e o Algarve, durante mais de um milénio, criada pelos invasores romanos e
continuada pelos conquistadores islâmicos, seguiu-se a separação, delineada ao
sabor da reconquista cristã e das disputas fronteiriças entre o reino de
Portugal e o de Leão e Castela, ao longo do Guadiana. Não é, pois, por acaso,
que há bastantes traços comuns entre nuestros
hermanos andaluces e os
alentejanos, por um lado, e entre estes e os algarvios, por outro. «Mediterrâneo
por natureza e atlântico por posição», como nos ensinou o saudoso Prof.
Orlando Ribeiro, os parâmetros fisiográficos desta região marcaram as
populações que aqui viveram, do mesmo modo que continuam a marcar o alentejano
dos dias de hoje.
Após a reconquista, concluída por D.
Afonso III, e na sequência da reorganização territorial, foi criada a comarca
de “Antre Tejo e Odiana” (Entre Tejo
e Guadiana), designação antiga que resistiu ao tempo através da poética de
Bernardim Ribeiro, na Écloga de Jano e Franco, e que corresponde, grosso-modo,
ao actual Alentejo. Anteriormente, o termo Alentejo, como nome de região, não existia. Com o significado de “para além do Tejo”, esta designação foi
criada pelos conquistadores vindos do norte, do jovem reino de Portugal. O “Ultra Tagum”, no latim dos eruditos de
então, deu algo foneticamente muito próximo de “Alem Tejo”, no dialecto romance galaico-prtuguês, que era o que se
falava aí, ao tempo dos nossos primeiros reis. Tendo este grande rio ibérico
por fronteira natural, as terras que lhe ficavam a sul estavam, pois, para além
do Tejo.
Alentejanos são, pois,
todos os portugueses da margem esquerda do Tejo. E o seu nome, que nada tem de
especial quando dito por alguém da margem norte, constitui um paradoxo sempre
que são os próprios alentejanos a assim se autonomearem, uma vez que sendo e
estando do lado sul do grande rio, para eles o lado de cá, e, portanto, aquém
do Tejo, se estão a afirmar além dele, como bem lembrou o Prof. José Matoso.
Alentejano é, pois, o nome pelo qual esta comunidade se identifica, sem se dar
conta que, em rigor, o termo só faz sentido quando dito por estremenhos,
beirões, minhotos, transmontanos, nunca por eles e, muito menos, por algarvios.
Nestas condições, dever-nos-íamos considerar “aquentejanos”, ideia, aliás, já avançada no século XIII, mas que
não fez vencimento. Com efeito, dois documentos assinados em Beja, em 1284,
auto-situam-se no “Aquem Tejo”.
No que respeita esta que é a mais
extensa região do País, a sua diversidade geográfica e geológica determina que,
dentro de uma certa unidade, como é muitas vezes apresentada, haja diferenças
sensíveis de local para local. Há um Alentejo interior, a oriente, semiárido,
dominado pela azinheira, e um outro, a ocidente, menos seco, influenciado pelos
ventos húmidos do Atlântico, onde o montado de cortiça impera. Por outro lado,
a escarpa de falha da Vidigueira, um acidente tectónico que limita a sul a
serra de Portel, marca igualmente, como um degrau, a separação entre duas
superfícies bem assinaladas pelos geógrafos, a de Évora, a norte, mais elevada
e acidentada, e a de Beja, a sul, mais rebaixada e de mais vastas planuras. São
ainda Alentejo os alagadiços campos de arroz da bacia do Sado, os densos
pinhais da franja litoral e o extenso areal e os alcantilados da linha de
costa.
O substrato geológico e os
condicionalismos climáticos que caracterizam o Alentejo foram favoráveis à
vegetação que aqui se desenvolveu, parte dela indígena e outra parte
introduzida, bem como à ocupação animal, também ela autóctone e importada. O
montado e o porco preto dele dependente, a vinha, o olival e a seara de pão, a
”tetralogia mediterrânea”, no dizer de Alfredo Saramago, constituem
elementos maiores tradicionalmente referidos nesta paisagem que, como todos
sabemos, ficou marcada por um regime de «Terra pouca para muitos, terra
muita para poucos», como cantou Manuel Alegre, em 1996.
São alentejanos os madeireiros serranos
de Portalegre e os seareiros das planícies que se estendem para Sul. São
alentejanos os cultivadores de sequeiro, os regadores do vale do Caia e os que
vivem dos campos aluviais dos seus grandes rios. Mas não são menos alentejanos,
quase sempre esquecidos, os pescadores na longa faixa litoral, que se estende
da restinga de Tróia às falésias atlânticas do Algarve
Fala-se do falar alentejano, da cozinha
alentejana, dos cantares do Alentejo e contam-se divertidas anedotas, visando
os seus habitantes.
Há uma trintena de
anos, transportei comigo, vinda do Alentejo interior, uma comadre de visita a
uma filha residente em
Almada. Viemos por Setúbal e, durante a subida da serra da
Arrábida, esta minha amiga que, pela primeira vez, saía do seu cantinho, dava
mostras de um certo mal-estar. «Não sei o que tenho, sinto-me apertada.
Falta-me a lonjura do nosso Alentejo. Isto aqui é só cabeços. E que cabeços!»,
dizia para mim.
E foi assim até ao
alto da capelinha de Nossa Senhora das Necessidades. A partir daí, na descida
para Azeitão, foi-se-lhe diluindo a aflição e, quando passámos à planura,
ouvi-a exclamar: «Aqui, sim, já a gente respira!».
Em sua opinião,
voltáramos ao Alentejo. E tinha razão!
Administrativamente
integrada na Estremadura, a península de Setúbal só a ela se liga pelas Pontes
Vasco da Gama e 25 de Abril e pelo grande fluxo de cidadãos que, de uma e de
outra banda do gargalo do Tejo, o atravessam diariamente, nos dois sentidos, a
caminho do trabalho e no regresso a casa. Como geólogo contactei de muito perto
com os terrenos e também com as gentes desta região, tendo tido oportunidade de
constatar aqui a continuidade, não só territorial, como também cultural do
Alentejo. São as fábricas de cortiça e de transformação de carne de porco, são
os mercados, onde não faltam o pão e o queijo alentejanos, a massa de pimentão,
os poejos, os cardinhos e as beldroegas, são os restaurantes e as tabernas à
moda antiga, as colectividades culturais e recreativas.
Galopim de Carvalho