Ilustração do autor
A declaração do Cante Alentejano como Património Cultural
Imaterial da Humanidade foi aprovada pelo Comité Intergovernamental da
UNESCO, em Paris, no passado dia 27 de
Novembro. Logo após a feliz decisão, as vozes dos cantadores do Grupo Coral e
Etnográfico da Casa do Povo de Serpa fizeram-se ouvir nos espaços da nobre
Organização das Nações Unidas para a Educação Ciência e Cultura na capital
francesa.
Todos sabemos que, com uma ou outra excepção, por razões
óbvias, os media preferem os grande
escândalos. Casos como o que tem ocupado
as primeira páginas na semana que findou, vendem, seguramente muito mais do que
esta honraria atribuída à cultura portuguesa. Todos sabemos que é assim e é
ingénuo quem pensar o contrário.
Na literatura sobre a gastronomia alentejana encontram-se
referências a uma certa associação que sempre se fez entre os comeres e o cante
que distinguem esta que é a maior província de Portugal. Não será exagerado
dizer que todo aquele que teve o privilégio de ouvir os homens em coro numa das
muitas vendas e tabernas, onde os cheiros da cozinha invadem a zona de
convívio, não poderá deixar de fazer esta associação. Quem já comeu numa
qualquer aldeia do Alentejo e, a dada altura, os homens se levantam e unem num
coral, único na museografia nacional e mundial, não pode deixar de ligar os
sons e os sabores que ali persistem, como que a fazerem frente à mundialização
cultural que nos invade.
Sempre associei os aromas da gastronomia tradicional
alentejana aos seus cantares. E isso resulta de uma vivência começada em
criança, em finais dos anos 30, quando ia à taberna do Monginho buscar meio
litro de vinagre e por lá me esquecia a ouvir os homens, à volta de uma grande
mesa forrada de oleado, repleta de petiscos perfumados e de copos de vinho, uns
cheios, uns meios, outros vazios. Foi numa destas idas ao Monginho que o «Meu
lírio roxo» nunca mais se separou do grão cozido, a fumegar, temperado de
azeite e vinagre, com salsa e cebola picadas, que os homens comiam a acompanhar
sardinhas de barrica acabadas de fritar, enchendo o espaço do convidativo cheiro
da fritura. Esta junção dos cantares, dos comeres e seus odores, tive-a por
diversas vezes, na adolescência, de que recordo um fim de tarde, nos anos 50,
na venda do Ti’ Zé Calado, na Vendinha, em que se assavam linguiças e
farinheiras e se ouvia, cadenciada, «A ribeira quando nasce, vai de pedrinha em
pedrinha...». Uma outra vez, foi na tasca do Rabino, em Valverde, num Agosto
seco e escaldante, corria o ano de 1964. Foi com os rurais que ali trabalhavam
nas escavações da Anta Grande do Zambujeiro e no Cromeleque dos Almendres com o
arqueólogo Henrique Pina. E nesta era o coelho frito, temperado de alho e
pimentão, e as perninhas de rã de tomatada, ao som do «Deitei o limão
correndo...». O aroma e o sabor do toucinho tirado da salgadeira e assado na
brasa, comido com pão à navalha e copinhos de aguardente perfumada, saída ainda
quente do alambique, na grande adega das Cortiçadas, em São Sebastião da
Giesteira, nunca mais se separou do «Ao romper da aurora, sai o pastor da cabana...»
Uns tempos mais tarde, ainda a «Grândola, Vila Morena», do
grande e saudoso Zeca, não tinha a conotação que passou a ter a partir “daquela
Madrugada”, os seus belos acordes remataram uma monumental açorda de poejos com
bacalhau e ovos cozidos, comida lá para as tantas, para “desenratar” de uma
jornada de fartas comezainas e muitos copos nas bodas de um parente.
A última situação que me foi dado viver deste casamento de
sabores e cantares teve lugar em finais de 1998, na Pousada dos Lóios, em
Évora, durante um almoço oferecido aos participantes do «1º Simpósio
Internacional para a Paleobiologia dos Dinossáurios», que tive o gosto de
promover, como director do Museu Nacional de História Natural. Uma vintena de
cientistas de nomeada, oriundos das cinco partes do mundo, saborearam as
belíssimas entradas de paio, presunto e queijos locais e deliciaram-se com o
magnífico ensopado de borrego, olhando e sorrindo para nós como que a dizer
«que coisa boa!». Começavam eles a regalar-se com a encharcada, bem perfumada
de canela, quando um grupo coral de homens e mulheres, envergando os trajes
regionais, irrompeu lá no fundo do grande claustro, cantando e marchando,
grudados uns aos outros, numa mole humana que se aproximava, lenta e cadenciada,
a passo certo, num crescendo de arrepiar os cabelos e trazer aos olhos uma
lágrima rebelde: «Olha a noiva, se vai linda...».
Grupo de Cante Alentejano de Évora, por ocasião do 1º
Encontro Internacional de Paleobiologia dos Dinossáurios, na Pousada dos Lóios.
Como alentejano que me orgulho de ser, cantei com eles e
desses momentos conservo na memória os
olhos a brilhar da Doutora Angela Milner, do Museu de História Natural de
Londres, o ar extasiado do Prof. John Horner, o paleontólogo americano que se
celebrizou como assessor científico de Spielberg no inesquecível Jurassic Park,
ou o do Prof. Detlev Thies, da Universidade de Hannover. Não esqueço ainda o ar
feliz de merecido orgulho do Dr. Abílio Fernandes, um dinossáurio entre os
autarcas do pós-25 de Abril, um goês que assimilou, a cem por cento, a maneira
de ser e de estar dos alentejanos.
Lisboa, 02 de Dezembro de 2014
Galopim de Carvalho