terça-feira, 30 de setembro de 2014

A SOPA DE PEDRA E A ASAE


Há dias, tomei conhecimento, através da televisão, qua a ASAE proibiu o uso da pedra na terrina que leva à mesa a saborosa e suculenta sopa da dita, que se faz, e bem, em Almeirim.
Terá esta autoridade as suas razões, que eu desconheço. Mas tendo em conta a natureza da pedra ali usada – um seixo de quartzito – não vejo qual o motivo da proibição. Praticamente inerte, do ponto de vista químico, à semelhança do vidro, de que, à falta de areia, é matéria-prima, esta pedra não representa qualquer risco para a saúde. Outro tanto não se pode dizer do vidrado da loiça de barro vermelho que ainda vai à mesa em alguns restaurantes. Por outro lado, o quartzito é bem mais tenaz do que a faiança, a porcelana ou o vidro, não havendo risco de quebrar e produzir esquírolas lesivas da integridade física dos clientes.
Pondo de parte a falta de bom senso, por vezes, demonstrada por esta polícia zeladora da nossa segurança alimentar e económica, e este caso da proibição do uso da pedra afigura-se-me como isso mesmo, temos de reconhecer o seu importantíssimo papel num país ainda longe de pôr fim aos mixordeiros, vendedores de “banha da cobra”, “chico-espertos”, corruptos e quejandos.
São muitos, entre portugueses e estrangeiros, os que conhecem a sopa de pedra, que tem em Almeirim o seu mais conhecido centro de divulgação. São ainda muitos os que relacionam esta tão falada especialidade com a bela história do frade que, de panelinha de barro meia de água, numa mão, e um seixo rolado, na outra, bateu à porta de uma quintaneira e, habilmente, de pedido em pedido, foi conseguindo angariar para o cozinhado tudo o que uma suculenta e saborosa sopa deve ter, do naco de toucinho à couve, passando pelo chouriço, pelo alho, pela cebola e pelas batatas, sem esquecer a pitada de sal.
São conhecidas versões afins em velhas histórias populares europeias. Envolvem viajantes famintos, chegados a uma dada localidade e, dependendo das respectivas culturas, a pedra é substituída por um botão, um pedaço de madeira, ou qualquer outro objecto. Na tradição portuguesa, o viajante é, como se disse, um frade e a história evoca-se hoje em Almeirim onde vários restaurantes servem esta aprimorada e nutritiva confecção.
A mais divulgada das sopas de pedra que se fazem nesta cidade ribatejana não é a de história do nosso sabido frade. É muito mais rica. Para além da água e do seixo rolado, leva toucinho entremeado, orelha de porco, chouriço de carne e de sangue, feijão encarnado, lombarda, alho, cebola e batata e é bem apaladada com louro, coentros, sal e pimenta.
Como quaisquer cursos de água, no seu trabalho normal, os múltiplos tributários que integram a enorme bacia do Tejo, em Portugal e em Espanha, canalizaram no grande rio todos os materiais detríticos, entre blocos, seixos, areia e uma poeira fina essencialmente argilosa, resultantes da meteorização e erosão dos terrenos atravessados, maioritariamente formados por xistos, granitos, e quartzitos. Dada a fragilidade mecânica dos xistos, a erosão pulveriza-os e transporta-os a caminho do mar. O granito tende a desagregar-se e a fornecer areias, predominantemente de quartzo, e a dita poeira argilosa, resultante da alteração dos feldspatos, poeira que, convém lembrar, faz a lama dos caminhos, em dias de chuva, e o pó, em tempos de estio. Apenas o quartzito, a mais dura das rochas, reúne características físicas e químicas, susceptíveis de gerar fragmentos de pedra resistentes ao transporte de centenas e, até, milhares de quilómetros, boleando-se por rolamento durante o percurso. São, pois, de quartzito a imensa maioria dos seixos das grandes planuras aluviais ribatejanas, os mesmos que se encontram no fundo da terrina que, em Almeirim, ia à mesa com a tão falada sopa.


- Mas, afinal, o que é o quartzito? – Perguntou-me um estudante da Escola Superior de Educação de Santarém, de serviço às mesas, a ganhar uns tostões em tempo de férias, a quem eu acabara de explicar a origem da pedra que ele, em jeito de brincadeira e delicadamente, colocara no meu prato.
- Precisamos recuar aí uns 500 milhões de anos, a um período da era paleozóica, que tem o nome de Ordovícico. – Comecei a explicação que achei por bem prestar a este meu interlocutor. - Nesse tempo existiu aqui um oceano muito anterior ao Atlântico, que os geólogos baptizaram de Rheic, com as suas plataformas continentais na transição para as terras emersas. Como acontece nos dias de hoje, os continentes despejavam no mar, através dos rios de então, os detritos da erosão que os ia arrasando.
- Até aqui, tudo bem. E o quartzito, como é que aparece? – Insistiu o jovem.
- Por razões meramente dinâmicas e à semelhança do que podemos observar nos dias de hoje, os detritos maiores, ou seja, os blocos e os seixos ou calhaus, ficam maioritariamente em terra, ao longo dos rios, como aqui, nesta região e em muitas outras.
- Isso eu sei. – Alegrou-se o rapaz.
 - Continuando, - prossegui - as areias, predominantemente de quartzo, atingem o litoral, acumulam-se nas praias e cobrem as plataformas continentais. Julgo que sabes que o quartzo é dióxido de silício, praticamente o mesmo material de que é feito este copo que tenho à minha frente.
- Isso eu sei. Já visitei uma fábrica na Marinha Grande e foi lá que aprendi que quase tudo o que é vidro é feito de areia, dos copos e garrafas às vidraças de janelas, portas e grandes montras.
- Óptimo. – Exclamei. - Passemos, então, adiante. Os materiais argilosos, por serem muito finos, permanecem mais tempo em suspensão nas águas e acabam por se depositar nos taludes oceânicos a caminho dos grandes fundos.
- Mas ainda não chegámos aos quartzitos. – Impacientava-se o rapaz.
- Calma. Vamos devagar. Quando este antigo oceano se fechou, num processo que se iniciou há aproximadamente 375 milhões de anos e que durou mais de 50 milhões, conhecido por orogenia Hercínica ou Varisca, os sedimentos nele acumulados, uma vez sujeitos a temperaturas e pressões elevadas, sofreram transformações e enrugamentos, dando nascimento a uma grande cadeia de montanhas, hoje parcialmente arrasada pela erosão, de que a Península Ibérica é uma pequena parte.
- Isso estudei eu no meu 10º ano. – Adiantou-se, ele.
- Exacto. – Confirmei e acrescentei. - Por exemplo, consoante a intensidade dessas transformações, os materiais argilosos deram origem a xistos, filádios, micaxistos, gnaisses e, no caso de terem atingido temperaturas que os levaram à fusão, deram nascimento a um magma que, por arrefecimento, gerou o granito. Neste mesmo processo, os calcários foram transformados em mármore.
- Quer dizer que os xistos e os granitos do Alentejo, das Beiras e do norte do país fazem parte dessa história?!
- É isso mesmo! E os mármores de Estremoz, Vila Viçosa, também.
 -E os quartzitos? – Insistiu, curioso, o simpático rapaz.
– É muito simples. Disse a concluir. - As areias acumuladas nas plataformas continentais desse antigo oceano, uma vez sujeitas ao referido processo orogénico, foram compactadas e os respectivos grãos recristalizaram, dando origem a uma rocha de grande inércia química, muito coesa, bastante dura e, por tudo isso, resistente à erosão. E aí tens como nasceu o quartzito. Na paisagem portuguesa, são muitos os relevos suportados por quartzitos. São os chamados relevos de dureza. Geralmente alongados, formam cristas, sendo responsáveis por muitas das nossas serras, como as do Buçaco, Marofa, Penha Garcia e outras. Se os quiseres ver na origem tens de ir, por exemplo, às Portas de Ródão, na Serra da Talhada. Até pode ser de lá que veio o seixo que temos aqui à nossa frente.

                                                       Galopim de Carvalho