terça-feira, 30 de setembro de 2014

A SOPA DE PEDRA E A ASAE


Há dias, tomei conhecimento, através da televisão, qua a ASAE proibiu o uso da pedra na terrina que leva à mesa a saborosa e suculenta sopa da dita, que se faz, e bem, em Almeirim.
Terá esta autoridade as suas razões, que eu desconheço. Mas tendo em conta a natureza da pedra ali usada – um seixo de quartzito – não vejo qual o motivo da proibição. Praticamente inerte, do ponto de vista químico, à semelhança do vidro, de que, à falta de areia, é matéria-prima, esta pedra não representa qualquer risco para a saúde. Outro tanto não se pode dizer do vidrado da loiça de barro vermelho que ainda vai à mesa em alguns restaurantes. Por outro lado, o quartzito é bem mais tenaz do que a faiança, a porcelana ou o vidro, não havendo risco de quebrar e produzir esquírolas lesivas da integridade física dos clientes.
Pondo de parte a falta de bom senso, por vezes, demonstrada por esta polícia zeladora da nossa segurança alimentar e económica, e este caso da proibição do uso da pedra afigura-se-me como isso mesmo, temos de reconhecer o seu importantíssimo papel num país ainda longe de pôr fim aos mixordeiros, vendedores de “banha da cobra”, “chico-espertos”, corruptos e quejandos.
São muitos, entre portugueses e estrangeiros, os que conhecem a sopa de pedra, que tem em Almeirim o seu mais conhecido centro de divulgação. São ainda muitos os que relacionam esta tão falada especialidade com a bela história do frade que, de panelinha de barro meia de água, numa mão, e um seixo rolado, na outra, bateu à porta de uma quintaneira e, habilmente, de pedido em pedido, foi conseguindo angariar para o cozinhado tudo o que uma suculenta e saborosa sopa deve ter, do naco de toucinho à couve, passando pelo chouriço, pelo alho, pela cebola e pelas batatas, sem esquecer a pitada de sal.
São conhecidas versões afins em velhas histórias populares europeias. Envolvem viajantes famintos, chegados a uma dada localidade e, dependendo das respectivas culturas, a pedra é substituída por um botão, um pedaço de madeira, ou qualquer outro objecto. Na tradição portuguesa, o viajante é, como se disse, um frade e a história evoca-se hoje em Almeirim onde vários restaurantes servem esta aprimorada e nutritiva confecção.
A mais divulgada das sopas de pedra que se fazem nesta cidade ribatejana não é a de história do nosso sabido frade. É muito mais rica. Para além da água e do seixo rolado, leva toucinho entremeado, orelha de porco, chouriço de carne e de sangue, feijão encarnado, lombarda, alho, cebola e batata e é bem apaladada com louro, coentros, sal e pimenta.
Como quaisquer cursos de água, no seu trabalho normal, os múltiplos tributários que integram a enorme bacia do Tejo, em Portugal e em Espanha, canalizaram no grande rio todos os materiais detríticos, entre blocos, seixos, areia e uma poeira fina essencialmente argilosa, resultantes da meteorização e erosão dos terrenos atravessados, maioritariamente formados por xistos, granitos, e quartzitos. Dada a fragilidade mecânica dos xistos, a erosão pulveriza-os e transporta-os a caminho do mar. O granito tende a desagregar-se e a fornecer areias, predominantemente de quartzo, e a dita poeira argilosa, resultante da alteração dos feldspatos, poeira que, convém lembrar, faz a lama dos caminhos, em dias de chuva, e o pó, em tempos de estio. Apenas o quartzito, a mais dura das rochas, reúne características físicas e químicas, susceptíveis de gerar fragmentos de pedra resistentes ao transporte de centenas e, até, milhares de quilómetros, boleando-se por rolamento durante o percurso. São, pois, de quartzito a imensa maioria dos seixos das grandes planuras aluviais ribatejanas, os mesmos que se encontram no fundo da terrina que, em Almeirim, ia à mesa com a tão falada sopa.


- Mas, afinal, o que é o quartzito? – Perguntou-me um estudante da Escola Superior de Educação de Santarém, de serviço às mesas, a ganhar uns tostões em tempo de férias, a quem eu acabara de explicar a origem da pedra que ele, em jeito de brincadeira e delicadamente, colocara no meu prato.
- Precisamos recuar aí uns 500 milhões de anos, a um período da era paleozóica, que tem o nome de Ordovícico. – Comecei a explicação que achei por bem prestar a este meu interlocutor. - Nesse tempo existiu aqui um oceano muito anterior ao Atlântico, que os geólogos baptizaram de Rheic, com as suas plataformas continentais na transição para as terras emersas. Como acontece nos dias de hoje, os continentes despejavam no mar, através dos rios de então, os detritos da erosão que os ia arrasando.
- Até aqui, tudo bem. E o quartzito, como é que aparece? – Insistiu o jovem.
- Por razões meramente dinâmicas e à semelhança do que podemos observar nos dias de hoje, os detritos maiores, ou seja, os blocos e os seixos ou calhaus, ficam maioritariamente em terra, ao longo dos rios, como aqui, nesta região e em muitas outras.
- Isso eu sei. – Alegrou-se o rapaz.
 - Continuando, - prossegui - as areias, predominantemente de quartzo, atingem o litoral, acumulam-se nas praias e cobrem as plataformas continentais. Julgo que sabes que o quartzo é dióxido de silício, praticamente o mesmo material de que é feito este copo que tenho à minha frente.
- Isso eu sei. Já visitei uma fábrica na Marinha Grande e foi lá que aprendi que quase tudo o que é vidro é feito de areia, dos copos e garrafas às vidraças de janelas, portas e grandes montras.
- Óptimo. – Exclamei. - Passemos, então, adiante. Os materiais argilosos, por serem muito finos, permanecem mais tempo em suspensão nas águas e acabam por se depositar nos taludes oceânicos a caminho dos grandes fundos.
- Mas ainda não chegámos aos quartzitos. – Impacientava-se o rapaz.
- Calma. Vamos devagar. Quando este antigo oceano se fechou, num processo que se iniciou há aproximadamente 375 milhões de anos e que durou mais de 50 milhões, conhecido por orogenia Hercínica ou Varisca, os sedimentos nele acumulados, uma vez sujeitos a temperaturas e pressões elevadas, sofreram transformações e enrugamentos, dando nascimento a uma grande cadeia de montanhas, hoje parcialmente arrasada pela erosão, de que a Península Ibérica é uma pequena parte.
- Isso estudei eu no meu 10º ano. – Adiantou-se, ele.
- Exacto. – Confirmei e acrescentei. - Por exemplo, consoante a intensidade dessas transformações, os materiais argilosos deram origem a xistos, filádios, micaxistos, gnaisses e, no caso de terem atingido temperaturas que os levaram à fusão, deram nascimento a um magma que, por arrefecimento, gerou o granito. Neste mesmo processo, os calcários foram transformados em mármore.
- Quer dizer que os xistos e os granitos do Alentejo, das Beiras e do norte do país fazem parte dessa história?!
- É isso mesmo! E os mármores de Estremoz, Vila Viçosa, também.
 -E os quartzitos? – Insistiu, curioso, o simpático rapaz.
– É muito simples. Disse a concluir. - As areias acumuladas nas plataformas continentais desse antigo oceano, uma vez sujeitas ao referido processo orogénico, foram compactadas e os respectivos grãos recristalizaram, dando origem a uma rocha de grande inércia química, muito coesa, bastante dura e, por tudo isso, resistente à erosão. E aí tens como nasceu o quartzito. Na paisagem portuguesa, são muitos os relevos suportados por quartzitos. São os chamados relevos de dureza. Geralmente alongados, formam cristas, sendo responsáveis por muitas das nossas serras, como as do Buçaco, Marofa, Penha Garcia e outras. Se os quiseres ver na origem tens de ir, por exemplo, às Portas de Ródão, na Serra da Talhada. Até pode ser de lá que veio o seixo que temos aqui à nossa frente.

                                                       Galopim de Carvalho


domingo, 28 de setembro de 2014

ENTUSIASMO


 ‘Ter entusiasmo o que é?’
me pergunta, iluminado,
um pimpolho, tão bebé
que me deixa embaraçado.

É que tendo, em seu olhar,
espelhado o bom sentido,
me é difícil explicar
o que nele é já vivido.

Inspirado em seu brinquedo,
dando um beijo, lhe respondo:
É gostarmos de brincar...

Mas a chave do segredo
veio dos olhos - Não escondo -
da criança a perguntar.

João d’Alcor


quinta-feira, 25 de setembro de 2014

OUSAR SER FELIZ: DÁ TRABALHO MAS COMPENSA!



Já se encontra em todas as livrarias do nosso país o novo livro da nossa colaboradora Rossana Appolloni, editado pela Self Desenvolvimento Pessoal. Ousar ser feliz: dá trabalho mas compensa! é um conjunto de 100 textos independentes mas interligados entre si que procuram ser dicas para aqueles que desejam uma vida positivamente mais intensa. A felicidade não é uma meta que se consiga alcançar após a resolução de certos problemas, mas sim uma forma de estar e de ser num percurso que se vai construindo. Não é fácil, mas é possível: basta assumirmos um papel ativo e fazermos as opções certas, que são diferentes para cada um de nós. Há que ter a coragem de enfrentar os próprios medos e superar os obstáculos que vão aparecendo, há que arriscar sair da zona de conforto e explorar o desconhecido, há que assumir a responsabilidade das escolhas que se fazem e pôr-se no centro da própria vida, como autor da própria existência. É um trabalho diário, de exploração e descoberta constantes, feito de trilhos irregulares e incertos que exigem perseverança, mas cujas gratificações compensam!

Para mais informações pode consultar o site da autora www.rossana-appolloni.pt

terça-feira, 23 de setembro de 2014

UMA LAGOA ALENTEJANA


Parecia uma cena dum filme ainda a preto e branco: o frio era cortante, o nevoeiro espesso e, no meio da lagoa, via-se um corpo a boiar ao lado de um barco a remos com uma única pessoa vestida de negro que aguardava a chegada da entidade sanitária. Tudo isto se passou há várias décadas numa lagoa do litoral alentejano, a lagoa de Melides.
Localizada na costa alentejana, junto à praia com o mesmo nome, a lagoa de Melides estende-se para o interior através de vários quilómetros de arrozais. A norte, existe uma falésia de arenito. Desde 2010 que se encontra em processo de classificação, como Área Protegida. É um bom local para observar, patos e aves de rapina.
A abertura da lagoa ao mar, apesar de necessária para renovar a qualidade da água e permitir a recolonização por espécies marinhas, deverá ser efectuada antes da época de nidificação das aves aquáticas.
A Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo, presumimos que com a anuência do Instituto da Conservação da Natureza tem, por vezes, decidido abrir a Lagoa de Melides para o mar em plena época de nidificação das aves.
            A QUERCUS vem alertando as entidades oficiais para as consequências que decorrem de tal decisão, pois não são conciliadas a actividade dos agricultores com a época da procriação de aves.
            Porque não se ouve quem, tecnicamente, pode ajudar? Porque razão o Instituto da Conservação da Natureza atende outros interesses que não os da preservação da natureza? Porque se deixam morrer centenas de aves aquáticas? Simples incúria ou interesses meramente economicistas do cultivo do arroz?
Tudo deveremos fazer para evitar não só a perda da vida de seres humanos mas também a perda da vida de aves indefesas. De notar também que a observação de aves vem constituindo, em todo o mundo, um óptimo promotor turístico.

                                                          F. Neves



domingo, 21 de setembro de 2014

UM TIRO PARA O AR...MAS QUE MATA


Levantou grande celeuma a insistência do Ministério da Educação na chamada Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades (PACC), e que teve lugar há dois meses atrás. Adianto, desde já, não me parecer razoável que docentes que tenham anos de serviço no ensino, e em relação ao quais criaram expectativas de carreira, se vejam submetidos a uma prova que os possa eliminar dessa mesma carreira. Há maneiras mais dignas, eficazes e em tempo oportuno de seleccionar as pessoas para a docência.
Era sobre o conteúdo da prova que desejava tecer algumas notas. Se um exame se destina a seleccionar pessoas para o ensino, mesmo que ele exclua as especificidades de cada disciplina, as questões a colocar deveriam situar-se no universo do ensino e da aprendizagem. Pergunto-me quais os conhecimentos que a prova pretendia avaliar e se os candidatos tinham prévio conhecimento dos objectivos e temas a testar.  
Quanto às capacidades envolvidas na resolução da PACC, o avaliador preocupou-se mais com o comportamento do candidato perante problemas de natureza intelectual, irrelevantes, até, do que com aqueles que verdadeiramente assolam o quotidiano da escola e para os quais se exigem capacidades relacionais, emocionais e de tomadas de decisão da parte do professor.  
A continuarem este tipo de provas (o que espero não aconteça!), sugiro uma única pergunta para a próxima prova. Julgo que ela explicitaria melhor os conhecimentos e capacidades dos candidatos. Ei-la:
“Imagine que é professor de uma turma de 30 alunos com idades entre os 14-15 anos. Os alunos provêm do meio social médio-baixo, baixo, onde o desemprego atinge valores elevados (cerca de 18%). 25% dos alunos estão sinalizados como provenientes de ambientes familiares desestruturados.
Elenque alguns problemas susceptíveis de ocorrer no recreio, no edifício da escola e na sala de aula, decorrentes da situação descrita e, para cada um deles, delineie uma estratégia concreta e realizável, para lhes fazer face”.


                          Mário Freire

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

O SOL PARA LÁ DAS NUVENS



Por mais negras e cerradas que sejam as nuvens, há sempre sol e céu azul por cima delas. Esta afirmação é tão imediata e evidente que já vários a disseram ou escreveram, nesta ou noutra forma com idêntico sentido. Vem ela a propósito de um pensamento que, nos últimos tempos, me assola constantemente, quer em casa, ao abrir os jornais ou durante os noticiários da rádio ou da TV, quer na rua, face aos comentários de muitos com quem todos os dias me cruzo. E esse pensamento envolve este Portugal a viver tempos de indecoroso aviltamento, mercê de uma certa elite, entre políticos e grandes nomes do direito e das finanças, que, de há décadas, numa promiscuidade interesseira, descarada e impune, nos está a conduzir, decidida e conscientemente, no caminho do empobrecimento económico e também, estupidamente, no do definhamento científico e cultural. Tudo isto perante a passividade de um povo “imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio”, como escreveu o grande Guerra Junqueiro, há mais de um século, e sob a magistratura conivente de um Presidente da República que pouco mais de metade dos votantes (53,14%) colocaram no mais alto cargo do Estado, numa eleição em que quase metade dos eleitores se absteve. Mantidos incultos, muitos deles analfabetos funcionais, alienados pelo futebol e pelos programas televisivos de entretenimento que nos impõem e nos entram pela casa dentro a toda a hora, e, ainda, marcados por receios antigos, são muitos os portugueses que não ousam questionar um poder que os despreza e maltrata e muitos também os que, sem saberem porquê, lhe fazem respeitosa e submissa vénia.
Como nos aviões que, ao ganharem altitude, atravessam a cobertura de nuvens e atingem o esplendor do pleno azul, temos de encontrar forma, dentro da democracia, de romper com esta triste escuridão em que, com excepção de uns tantos privilegiados, fomos levados a viver.


                                                   Galopim de Carvalho

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

ENTREVISTA





Pois que a Parca é companhia,
mesmo quando não é vista,
houve em mim a ousadia
de pedir-lhe uma entrevista.

Eu confesso: O meu intento
era apenas saudá-la.
Anuiu, com tal alento
que só ela teve a fala:

 ‘Te acompanho, mas sem pressa.
Quanta gente em mim tropeça,
a fugir do seu Destino...

Sou ditongo: Parca e Vida.
Entrada haja ou Saída,
Clave ele é do mesmo Hino.’


João d’Alcor

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

O VESTUÁRIO, OS ADOLESCENTES E A ESCOLA




Numa conversa ocasional com dois adolescentes de 12-13 anos que frequentam a escola pública, abordou-se, a propósito de certo assunto, o tema do vestuário. Esses dois adolescentes, que apresentam grandes dificuldades em matemática, inglês, história, português…, enumeraram-me um sem número de marcas, tais como os sapatos all star, converse all star…, os óculos ray ban…, os relógios guess, timex…, as calças jeans, bermudas jeans, shorts jeans
Sempre reconheci a minha ignorância nestas matérias mas não fiquei admirado pelos conhecimentos que aqueles adolescentes manifestavam nelas. Sei que os tempos mudaram e a adolescência e a juventude de hoje têm outras preocupações que não coincidem com aquelas que eu tive naquelas idades. E têm outras maneiras de se afirmar perante os seus pares.
            Ora, o vestuário nos adolescentes assume-se como uma manifestação da identidade e é factor que contribui para a autoestima e, até, para a socialização. Ele faz parte da maneira de eles se exprimirem. Por isso, os alunos que, por motivos diversos, têm dificuldade em aceder a roupas ou adereços de marca ou se, com muita frequência, usam as mesmas roupas, podem sentir-se discriminados. Ter as roupas erradas, como se diz num estudo de 2002 de Tess Ridge, pode constituir-se numa experiência traumática para muitos adolescentes. Num outro estudo, conduzido pelo British Council, publicado em 2008, diz-se que um em cada dois alunos portugueses (51%) é gozado pela roupa que usa.
            Vivemos hoje num mundo em que é atribuída à aparência um valor elevado. Na adolescência, então, esse valor ganha intensidade e para a qual contribuem os artigos de vestuário usados.
            O que é que a escola pode fazer para atenuar as discriminações decorrentes do vestuário mas também do aspecto físico, da cor da pele, do sotaque, das deficiências e que impedem que certos alunos se possam sentir felizes naquele espaço de aprendizagem?
                                                                    
                                                               Mário Freire

sábado, 13 de setembro de 2014

OS SERÕES EM ÉVORA NOS ANOS 30 E 40 (3)


Os interesses dos homens nos serões desses anos variavam em função do respectivo estatuto sociocultural. Havia o chamado “Clube dos Ricos” que, como o nome indica, era centro de convívio de umas tantas famílias de terratenentes e de homens do topo da hierarquia social, e as sociedades recreativas, com destaque para a “Harmonia Eborense” e a “Bota Rasa”, frequentadas, sobretudo, por comerciantes, pequenos industriais, empregados do comércio e dos serviços e militares graduados. Aí se jogava o bilhar de três bolas, o xadrez, as damas, o dominó e outros, em salas reservadas, com cartas e a dinheiro. Uma outra classe de eborenses confraternizava na Sociedade Operária Joaquim António de Aguiar, um sopro de republicanismo laico e progressista, a sobreviver numa urbe particularmente conservadora.
Havia os que preferiam o convívio nos clubes desportivos que eram três: o Lusitano, o Juventude e o Sport Lisboa e Évora, modesta sucursal do já então grande Benfica. Outros preferiam os cafés, nomeadamente, o Camões, na Porta Nova, o Arcada e a Brasserie, na Praça do Giraldo, todos com esplanada nos meses sem chuva nem frio, sob as arcadas e, ainda, o Estrela d’Ouro, no começo da antiga rua dos Infantes. Num outro mundo, as tabernas, sempre cheias de uma clientela de gente pobre, eram locais também frequentados pela soldadesca, sempre muita nesses anos em que sediavam ali o Quartel-general da 4.ª Região Militar, o Regimento de Infantaria e o de Artilharia 1, o Hospital Militar, a Manutenção Militar, a Farmácia Militar e o Distrito de Recrutamento Reserva.
Nos serões, quando tempo o permitia, o tabuleiro da praça do Geraldo era um mar de homens e rapazes crescidos, em grupos de dois, três ou mais, a passearem para cá e para lá, horas e quilómetros, conversando.
Nos anos 40 já havia cinema, uma ou duas vezes por semana e, consoante a estação do ano, funcionava em espaço interior, no teatro Garcia de Resende e, depois, no Salão Central Eborense, ou ao ar livre, na Praça de Touros ou na esplanada dos Bombeiros Voluntários. Em qualquer destes locais de divertimento, o grosso da assistência era masculina. Mães e filhas no cinema, só acompanhadas pelo “chefe de família”.
Nesses tempos não havia televisão e a rádio ainda estava longe de entrar nas nossas vidas. Para os que, ao serão, ficavam em casa, as histórias que se ouviam e contavam, algumas de meter medo, com bruxas, feiticeiras, ladrões e salteadores, ou as conversas que se desenrolavam faziam as vezes dos folhetins radiofónicos ou das telenovelas do presente. Alguns dos contos ouvidos nesses finais de dia, li-os, mais tarde, coligidos por Leite Vasconcelos em grosso volume editado pela Universidade de Coimbra. Nem piores, nem melhores do que de hoje, foram tempos, isso sim, diferentes e que marcaram o meu modo de ver a sociedade.


                                                 Galopim de Carvalho

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

ENTRETENIMENTO



Mais que mero passatempo,
em contraste com labor,
é o entretenimento
o que a ambos dá sabor.

O andar bem entretido,
sem tais pólos a opor,
ao viver traz tal sentido...
Nem há bem de mor valor.

É tal dom, seguramente,
jus doado a toda a gente.
Dele ninguém venha a abdicar.

Mor é tido isso em mente,
mais convergem, no presente,
bens que a vida tem p’ra dar.


João d’Alcor

terça-feira, 9 de setembro de 2014

UM COMPROMISSO COM A CIDADANIA


Foi emitida uma circular, pelo ministro da educação de França, dirigida aos responsáveis de estabelecimentos de ensino onde é leccionado o nível equivalente aos nossos 10º, 11º e 12º anos de escolaridade, para que levassem a cabo, durante a fase inicial deste ano lectivo, uma actividade de educação para a cidadania
Segundo a referida circular, “os alunos deveriam ser encorajados a participar na vida do estabelecimento que frequentam e a afirmar, em pleno, o seu papel na comunidade educativa.” Relembrava-se, para isso, que o desenvolvimento da autonomia e do espírito de cidadania supõe a assunção dos direitos de que cada estudante dispõe.
Para além de uma campanha de comunicação que visava encorajar os alunos a participar nas eleições dos seus corpos, aos diferentes níveis, pretendia-se que eles soubessem quem eram as pessoas, dentro da escola, que os poderiam ajudar a levar a cabo as suas iniciativas de natureza cultural, científica, desportiva…
Haveria, então, uma formação específica sobre os direitos e deveres no interior do estabelecimento escolar, as funções dos diferentes órgãos e outros aspectos que fomentassem a iniciativa e a organização dos alunos, com duas horas obrigatórias para todas as turmas, ao mesmo tempo que eram encorajados debates, fóruns, encontros associativos, etc.
Para os professores directamente encarregados de levar a cabo esta iniciativa, foi disponibilizado um site na internet (www.education.gouv.fr à la rentrée), além de sessões de formação.
            Sobre a participação dos alunos na escola e o papel que esta pode desempenhar na sua formação global, para além da administração do currículo (stricto sensu), já aqui, por várias vezes, foi referido. Esta intervenção nos liceus franceses só vem reforçar quanto a escola pode ajudar a formar cidadãos mais participativos que contribuam para uma sociedade melhor. 


                                                                   Mário Freire

domingo, 7 de setembro de 2014

OS SERÕES EM ÉVORA NOS ANOS 30 E 40 (2)


 No Verão, em Évora, mães, filhas e filhos pequenos saíam à noite com destino ao Jardim Público, onde, às quintas-feiras e aos domingos, havia concerto pela banda de Infantaria 16 ou pela dos Amadores de Música. Era preciso chegar cedo para apanhar um bom lugar nos bancos da rua principal, perto do coreto. Conversando com as companheiras de ocasião, comentando isto ou aquilo acerca deste ou daquela que passava, tinham olho nas crianças brincando por perto, e nas filhas adolescentes, passeando para lá e para cá, de uma ponta à outra do jardim, flanando, como se dizia, acompanhadas pelos rapazes seus amigos ou namorados, numa das poucas oportunidades que tinham para estarem juntos.

 Uma outra oportunidade, mais apetecida, era a que podiam ter nos bailes nos clubes e nas sociedades recreativas. Uns restritos à classe mais endinheirada, onde as roupas caras se exibiam e disputavam, outros, frequentados pela classe remediada e outros, ainda, de cariz popular. Todos, porém, tinham um aspecto em comum: duas filas de cadeiras ao redor da sala, sendo que na fila da frente se sentavam as raparigas, à mercê dos rapazes que as fossem buscar para dançar e, na de trás, se instalavam as mães por muitas horas, entretidas a falar umas com as outras e, ao mesmo tempo, a vigiarem e protegerem as respectivas filhas das “más línguas”. Oportunidade única para andarem abraçados, era importante prevenir exageros e abusos que “dessem nas vistas”.

Com excepção dos bailes, os namorados desse tempo, ou “conversados”, como também se dizia e como o nome indica, só tinham autorização para conversar. O namoro tinha lugar com a pretendida à janela e o rapaz na rua. Aceite e de bom tom era que a janela fosse alta, normalmente, de primeiro andar. Namoro à janela do rés do chão ou à porta da rua era hipocritamente censurado pelos zeladores dos bons costumes e da decência. Beijos ou outras atitudes mais íntimas, que sempre houve, só aconteciam quando não houvesse olhos vigilantes por perto. Foi o tempo dos “paus-de-cabeleira”, um irmão, ou uma irmã, uma tia ou, por vezes, a própria mãe, com a função de evitarem atitudes tidas por “menos próprias” e garantir, às “bocas do mundo”, a honra da jovem. Rapariga com mácula, dizia-se, “ficava para tia”.

                           Galopim de Carvalho



sexta-feira, 5 de setembro de 2014

ENTREGA




Nas ofertas do que é meu,
algo dou e faz-me bem.
Mas importa ir mui além,
ofertando o próprio eu.

Mor ideal, a ser vivido,
totalmente e até ao fim,
é o dar-me. Quanto a mim,
nisso a vida faz sentido.

Abraçando esse ideal,
passo a ver quanto, afinal,
dom eu sou, porquanto herança.

Há fascínio que não cega,
neste abraço da entrega,
onde tudo é confiança.


João d’Alcor

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

PARA QUE SERVEM OS TESTES ESCOLARES?


A primeira ideia que vem à mente de um leigo em matéria de educação é que os testes servem para classificar os alunos. Não excluo que a grande maioria deles terá, nas nossas escolas, essa finalidade. Mas nem todos os testes deveriam servir para classificar.
Assim, no início de uma unidade de ensino será desejável que haja uma informação sobre os conhecimentos já adquiridos por parte do aluno. Esta informação servirá quer para o professor poder adequar os processos de ensino ao seu público, quer para o aluno fazer a recuperação de eventuais matérias em atraso e que sejam necessárias às aprendizagens que irão seguir-se. Aqui, não há que atribuir qualquer classificação mas, antes, uma informação ao aluno daquilo que ele necessita de lembrar.
Claro que, durante o processo de ensino, o professor, mediante questões escritas ou orais, tem sempre a possibilidade de ir recolhendo informações junto dos alunos sobre o modo como a aprendizagem está a ser feita; significa isso que, em qualquer momento, ele pode ter que reformular as estratégias já delineadas. É o feedback a funcionar no sentido aluno-professor.
Finalmente há o teste que associa a si uma classificação do aluno. Note-se que muitos professores se satisfazem com os resultados dos seus alunos quando aqueles seguem um padrão semelhante ao da curva de Gauss. Este padrão traduz-se por uma distribuição dos resultados em que a maioria tem uma classificação média, e duas minorias, uma com resultados altos e outra com resultados baixos. Esta é uma curva de probabilidade que traduz a ocorrência de um número elevado de acontecimentos aleatórios.
Acontece que o ensino não é uma actividade aleatória mas um acto intencional, visando o êxito dos alunos. Se os resultados de um teste se traduzirem num número elevado de classificações negativas, eles deverão alertar o professor para que algo não está a correr como devia, havendo necessidade de intervir, por vezes, a vários níveis.


                                               Mário Freire

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

OS SERÕES EM ÉVORA NOS ANOS 30 E 40 (1)



Depois do jantar, os homens saíam a caminho dos seus interesses. Fossem ricos, remediados ou pobres, a regra era essa. As mulheres ficavam em casa. Prisioneiras das responsabilidades que, tradicionalmente, lhes eram atribuídas, continuavam no exercício das tarefas domésticas e, ao mesmo tempo, a cuidar dos filhos. Destes, os mais pequenos faziam os trabalhos da escola ou brincavam, muitas vezes na rua, à porta da casa, sempre aberta. Nas famílias sem posses para terem criadas, competia às mães e às filhas com idade para ajudar, levantar a mesa, lavar a loiça, arrumar a cozinha e, as mais das vezes, costurar.
 Eram as mães que, contra elas próprias, educavam raparigas e os rapazes a perpetuarem os hábitos da sociedade machista em que cresci e me fiz homem, numa vivência estimulada pela Igreja e pelo poder político da época. Jovem casadoira, qualquer que fosse a sua condição, já sabia que o seu lugar ia ser no lar ou no ninho como algumas e alguns gostavam de dizer. Ao contrário das mulheres do campo, eram poucas as da cidade com trabalho fora de casa. Grande número destas, uma vez casadas, abandonavam o emprego, para se dedicarem à casa e aos filhos.

 No mundo rural não era assim. Pobres por condição e tradição, mães com ou sem filhos e raparigas adolescentes tinham mesmo de trabalhar sempre que as oportunidades surgissem e essas oportunidades eram, sobretudo, a monda, a ceifa e a apanha da azeitona.

 Nesse tempo a roupa de casa e quase toda a de vestir eram confecionadas no seio da família. O pronto-a-vestir dos dias de hoje estava a décadas de distância, mas já havia algumas lojas onde se podia comprar roupa feita. Eram os algibebes, (do árabe al gebabb, uma reminiscência de cinco séculos de ocupação muçulmana), mas isso só para os homens e, em especial, para os que tinham ligações ao mundo rural. Para uma clientela urbana com posses para tal, havia os alfaiates e as camisarias. As mulheres, via de regra, compravam os tecidos e as mais endinheiradas tinham costureiras em casa ou pagavam às modistas. As tidas por remediadas talhavam, cosiam e orientavam as filhas a fazerem o enxoval, respeitando o mesmo caminho que fora o delas.


                                             Galopim de Carvalho